Abolicionismo: Igualdade sem discriminação

AutorSônia T. Felipe
CargoDoutora em Filosofia pela Universität Konstanz (Alemanha)
Páginas89-116

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Em 1853 nascia em Campos um menino, registrado como exposto com o nome de José Carlos do Patrocínio. A mãe, uma menina de apenas 13 anos de idade, Justina Maria do Espírito Santo, escrava. O pai tinha sua razão para nunca reconhecer aquele menino como seu filho.

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Era um sacerdote da igreja católica: Padre João Carlos Monteiro, proprietário da menina escrava a quem estuprara aos 12 anos, ou, sabe-se lá, antes dessa idade. O menino José Carlos nasceu, pois, sob o signo da violência sexual racista, institucionalizada nas práticas econômicas e políticas avalizadas e abençoadas pela igreja católica. Nascido da violência, a biografia de José Carlos do Patrocínio foi escrita na luta pela abolição do regime escravagista no Brasil. Morreu de tuberculose galopante em 1905, aos 52 anos de idade, em decorrência do tabagismo.

Humanos, ao se proclamarem proprietários da vida de outros seres, aos quais consideram inferiores a si, instituem relações violentas. Escravização, violação física e emocional e maus-tratos são práticas indissociáveis. José do Patrocínio refere-se à essa combinação nos seguintes termos: "não se [pode] admitir a escravidão sem a disciplina desumana do chicote". Além dos castigos físicos, forma de deter o movimento de fuga ou qualquer outro tipo de resistência dos que estão retidos pelo regime que lhes priva da liberdade, o "cativeiro fere de interdição perpétua a vítima."1Todas as formas de escravização do corpo de animais, humanos e não-humanos, configuram-se em desdobradas formas de violação moral, física e emocional, protegidas pela instituição da própria escravatura, portanto, pela tradição.2Por isso, tradição não é sinônimo de ética. A moral tradicional é a matriz cognitiva a partir da qual práticas violentas e discriminadoras são mantidas como se fossem legítimas, do ponto de vista ético, par a par com as práticas que efetivamente preservam o valor inerente dos que estão sujeitos a elas. Para ser ética, uma prática institucional ou individual precisa demonstrar o benefício que representa para os que são diretamente

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afetados por ela. Nos costumes tradicionais não se requer essa prova. A escravização de seres vivos não foge à regra. Jamais se demonstrou o benefício que a exploração e morte de humanos e animais representam para eles. Os beneficiários dessa brutalidade jamais são quem a sofre. Exatamente por não sofrerem nenhum malefício com suas práticas de violência, os violentadores as mantêm. Mantidas ao longo de séculos, tornam-se tradições.

Assim tem sido escrita a história dos homens: violência contra os escravos, as mulheres, as crianças, os animais e ecossistemas, tidos como parte da natureza física a ser simplesmente expropriada para acumulação de mais-valia.

Animais, no sentido que designa um dos três reinos da vida, nascem livres e iguais em sua condição de indivíduos que se mantém vivos pelo próprio empenho em autoprover-se. A condição de ser obrigado a moverse no ambiente natural e social para autoprover-se pode ser compreendida como uma espécie de liberdade física negativa, dotando o animal de autonomia prática natural.

Emprego o termo autonomia prática no sentido elaborado por Steven

M. Wise, (Drawing the Line) contraposto ao de autonomia moral (Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes), esta sendo uma característica específica de seres cuja vontade pode ser guiada pela razão. Para efeito da atribuição de direitos aos animais, Wise reconhece autonomia prática a eles, defendendo três tipos de liberdade relativas ao corpo: 1.) a liberdade de não serem aprisionados; 2.) a liberdade de não serem escravizados; e 3.) a liberdade de não serem assassinados. As duas primeiras são representativas da liberdade de mover-se para prover-se de modo específico, característica que distingue a vida animal, dos vegetais. Ao nascer, o animal é separado bruscamente da fonte provedora de seu organismo. Os que aprendem a mover-se para prover-se seguindo padrões bem sucedidos de sua espécie adaptam-se às interações ambientais naturais e sociais hostis, e sobrevivem. Viver ... é muito perigoso [Guimarães Rosa]. Aplica-se a animais de outras espécies também, não apenas ao Homo sapiens.

Aprisionados e confinados, animais humanos e não-humanos são destituídos do senso que lhes é próprio, privados, pois, da liberdade de

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buscar seu próprio bem a seu próprio modo.3Refiro-me aqui ao conceito de bem próprio, específico elaborado por Paul W. Taylor, ao construir os fundamentos da ética biocêntrica, superando os limites da concepção antropocêntrica tradicional.

Na perspectiva de Taylor, todo indivíduo vivo têm um bem próprio de sua natureza. Esse bem constitui um valor, inerente à sua vida. O provimento de si inclui a busca do próprio bem físico e psicológico, no caso de animais dotados de senciência. Um animal é um ser vivo que provê a si mesmo a partir de sua própria consciência, e esta, embora seja típica de cada espécie, analogamente ao que ocorre nos humanos, também é única em cada indivíduo. A perda da liberdade, para um animal, representa uma ameaça à sua futura consciência específica de si.

O confinamento de animais os força a viverem a vida contrariando a natureza do que é o bem próprio de sua espécie. O bem próprio não é algo que possa ser oferecido por ninguém ao animal. Para estar bem, a seu próprio modo, o animal precisa da liberdade para interagir num ambiente natural e social que favoreça seu provimento físico e desenvolvimento psíquico. A escravização de humanos e de animais destitui o indivíduo escravizado da liberdade de prover-se a seu próprio modo para estar bem, na espécie de vida na qual nasceu.

Nos mamíferos, a separação chamada aqui de liberdade negativa, dá-se ao nascer, pelo corte do cordão umbilical que os manteve nutridos durante a gestação. No caso dos ovíparos, a ruptura dá-se com o fim dos nutrientes presentes no ovo. Ao nascerem, esses animais sofrem a ruptura do provimento, tornando-se imediatamente carentes de nutrientes, orientação ambiental e cuidados. Enquanto o valor genético da vida de cada animal pode ser reconhecido pela singularidade da bagagem de cada indivíduo, o valor biológico de sua vida, no entanto, é um valor agregado pelo conatus ou empenho de outros indivíduos em proporcionarem aos ainda não-nascidos e aos recém-nascidos os meios de vida específicos.

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Para os animais já nascidos, cujas vidas resultam de seu próprio conatus, a vida tem valor inerente4pelo simples fato de que resulta do seu empenho individual em nutrir-se e proteger-se de ameaças ambientais, naturais ou sociais. Nessa perspectiva, qualquer vida animal resulta da agregação de três formas de investimento: o genético, o biológico e o cultural (no sentido de cuidado de si).5Antes de nascerem, os animais recebem a bagagem genética e o investimento biológico feito por seus progenitores no processo da reprodução. Depois de nascidos, os animais ainda precisam aprender o cuidado específico de si. É nesse aprendizado que a mente do animal se constitui de forma específica. Ela resulta do investimento de cada indivíduo em manter-se vivo, do cultivo ou cuidado específico de si. É na interação livre com os de sua espécie que o animal forma a mente própria de sua natureza. No regime de escravidão, de confinamento, de exploração animal, privados das interações sociais específicas, o que resta são apenas corpos, organismos de diferentes espécies com bagagens genéticas diversas. O espírito que os caracterizaria, se perde.

Humanos e não-humanos dotados de órgãos sensoriais, portanto, sencientes, cada espécie num tempo mais breve ou prolongado, passam pela mesma agregação de valor que os torna sujeitos-de-sua-vida.6Liberdade

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física específica e bem-estar emocional específico são constitutivos do bem próprio de cada espécie animal. O confinamento, a prisão, o seqüestro, a tortura [física e psíquica] representam para qualquer animal o fim da possibilidade de se manter vivo em bom estado, de acordo com seu modo peculiar de existir. Quando animais são forçados a se enquadrarem nos moldes do bem-viver humano, antropomorfizados, eles são destituídos das condições de desenvolverem seu espírito. Os humanos têm, então, em sua propriedade, organismos de outras espécies animais, a quem dizem amar, mas os quais privaram do espírito.

Dotado da liberdade de mover-se para prover-se, todo animal é constituído de uma forma específica de senciência7(sensibilidade e consciência), sem a qual não pode gravar nem articular os conceitos necessários à manutenção de sua vida e à prevenção contra os riscos e ameaças representados pelo ambiente natural e social específicos. Por isso, enjaular, aprisionar ou confinar animais, em suma, escravizá-los, representa para eles o pior tormento. Ao nascer, o animal é separado da fonte de provimento representada por sua progenitora. Isso vale para qualquer espécie. Há diferença apenas quanto ao tempo necessário a cada espécie para orientar seus neo-natos. Humanos demoram décadas para aprender as complexas interações requeridas para garantir o movimento para o autoprovimento.

Impedir o animal de mover-se de acordo com sua espécie para obter os nutrientes e formar sua mente seguindo os padrões específicos e criando o padrão que o caracterizará como um indivíduo dessa espécie, é matar o espírito específico do animal, condenando-o a nutrir-se de modo artificial, e a sofrer a condição de sujeição total ao domínio humano. De que bem-estar animal se pode falar, neste caso?

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1. O abolicionismo e a defesa dos animais

Quando se fala de abolicionismo, fala-se da luta pela eliminação de todas as formas de aprisionamento, exploração e privação de liberdade, praticadas pelos seres humanos...

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