Aborto legal: elementos sociohistóricos para o estudo do aborto previsto por lei no Brasil

AutorMatthieu de Castelbajac
Páginas39-72
39
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 10, n. 3 p. 39-72 Nov. 2009/Fev. 2010
ABORTO LEGAL: ELEMENTOS SOCIOHISTÓRICOS PARA
O ESTUDO DO ABORTO PREVISTO POR LEI NO BRASIL(*)
ABORTION “IN DUE FORM”: SOCIOHISTORICAL ELEMENTS
FOR THE STUDY OF LEGAL ABORTION IN BRAZIL
Matthieu de Castelbajac(**)
RESUMO
O Brasil é um dos raros países, com legislações restritivas sobre o
aborto, a ter implementado serviços hospitalares permanentes, ainda que
pouco numerosos, para acolher demandas de abortos previstos por lei.
Como preliminar deste estudo sobre o processo desenvolvido nos últimos
20 anos, que estendeu o acesso lícito a aborto seguro nos casos previstos
por lei, pode ser útil, — especialmente em tempo de controvérsias, — trazer
um esclarecimento sociohistórico sobre a formação do aborto não-punível
no Brasil. Trata-se, em particular, de descrever os traços que desenham o
“aborto legal”. Sob este título, designamos as exigências jurídicas, técnicas
e morais que condicionam a realização conveniente deste procedimento
delicado.
Palavras-chave
Aborto; Direito; Sociologia.
(*) Agradeço a Rachelle Balbinot que releu este trabalho e nos ajudou nas várias fases de sua
redação com críticas e indicações sempre precisas. O presente artigo resultou de uma pesquisa
etnográfica no Rio de Janeiro e em São Paulo, com entrevistas com profissionais da saúde integran-
tes de serviços de aborto previsto por lei e de levantamentos bibliográficos feitos durante um
estágio no Centro de Estudos e Pesquisa de Direito Sanitário (CEPEDISA). Para um estudo mais
completo do referido processo, sugerimos a leitura de nossa dissertação, utilizada como base deste
artigo. CASTELBAJAC, Matthieu de. Se détacher sans heurts: étude des dispositifs d’interruption
légale de grossesse dans le Brésil contemporain. 2008. Dissertação (Mestrado) — Institut d’Études
Politiques de Paris, École Doctorale de Sciences Po, 2008.
(**)Groupe de Sociologie Politique et Morale — École des Hautes Études en Sciences Sociales. E-mail :
. Recebido em 25.5.09. Aprovado em 20.7.09.
40
Abstract
Brazil is one of the few countries with restrictive abortion laws to have
implemented permanent, albeit scant, hospital services, in order to address
demands of abortion due to the law. As a preliminary to this study about the
process carried out over the last 20 years, which has extended access to safe
abortion in conditions provided by law, it might be useful to offer some socio-
historical insights on the formation of non-criminal abortion in Brazil. To this
purpose, we describe the scenery of the “abortion in due form”. Under
this label, we group the juridical, technical and moral requirements conditioning
the realization of this procedure.
Keywords
Abortion; Law; Sociology.
INTRODUÇÃO
O que constitui, no Brasil contemporâneo, um “aborto legal”? Em pri-
meiro lugar, o que é aborto? Após longos anos de debates, houve uma certa
uniformização das definições jurídicas sobre o aborto entre juristas brasilei-
ros. Atualmente, a interrupção intencional da gravidez, de modo a impedir a
geração, é considerada, para todos os efeitos, como aborto.(1) No entanto,
não são juristas que devem praticar o aborto, quando a lei o permitir. Os
ginecologistas e obstetras, a quem essa missão cabe, julgam da permissibi-
lidade do aborto segundo outros critérios. Sabem, desde a faculdade de
medicina, que um abortamento é a explusão do produto da concepção, an-
tes deste ter alcançado o limiar da viabilidade. Segundo uma norma médica
internacional, quando houver expulsão do feto depois de 20 semanas de
gestação, não se fala mais de aborto, mas de “parto prematuro”.(2)
Estas diferenças lembram que fazer um aborto, por ser uma ação, sig-
nifica ter que fazer com critérios de exigência variáveis. O problema perti-
nente para nosso trabalho, em consequência, não é que a descrição de tal
ação admitiria “pontos de vista” concorrentes ou significados relativos e plu-
rais, — o que não se debate — mas que sua realização pragmática, na
situação concreta, é dependente de pontos de referência específicos.(3) Es-
(1) Conforme Mirabete, “O aborto é a interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção.”
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93.
(2) FAUNDES, Aníbal; BAZELATTO, José. O drama do aborto: em busca de um consenso. Campinas:
Komedi, 2004. p. 49.
(3) Cabe a Luc Boltanski o merito de ter deslocado o olhar sobre o aborto enquanto desempenho
relevante de uma sociologia pragmática. BOLTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. De la justification:
les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. p.60 et seq.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 10, n. 3 p. 39-72 Nov. 2009/Fev. 2010
Matthieu de Castelbajac
41
tes pontos sinalizam o itinerário administrativo da candidata ao aborto pre-
visto por lei, como também orientam o gesto do cirurgião que vai praticá-lo.
São as marcas que apoiam a realização de uma “ação que convém” à
situação.(4) Ou seja, delimitam as figuras conformadas às exigências de um
engajamento ajustado numa circunstância sobremaneira formalizada da vida
social, a realização de um aborto previsto por lei.
Para esclarecer a configuração contemporânea do aborto não punível,
precisamos identificar aqueles pontos de referência e de apoio, colocados
em cada etapa do processo de acesso ao aborto legal por um longo trabalho
de formalização jurídica. Não sendo juristas, não pretendemos tratar deste
trabalho sob seu aspecto mais especificamente jurídico. Interessamo-nos
apenas na operação de formalização cumprida pelo Direito. Tal operação se
aproxima sensivelmente do trabalho sociológico.(5) Em particular, destacamos
três grandes elaborações formais. Da primeira, foram extraídas as categori-
as antitéticas do aborto lícito e do aborto punível. Na segunda, o julgamento
sobre aborto vem se centralizando sobre uma figura feminina voluntária,
mas sofredora. À última operação, correspondem os três preceitos permissi-
vos chamados pelos juristas de “hipóteses” do aborto legal.
I. ABORTO LÍCITO E ABORTO CRIMINOSO
Existe na literatura especializada sobre aborto uma “hipótese repressi-
va”(6), segundo a qual, toda a história do aborto poderia se resumir à história
da sua repressão, enquanto o direito à interrupção da gravidez seria uma
invenção moderna. Esta divisão entre um passado repressivo e um futuro
libertador diz respeito à grande narrativa emancipadora. Indica um horizonte
de expectativa para fazer justiça tanto às aspirações presentes como à reme-
moração das situações passadas. Sem recusar este horizonte, parece-nos,
contudo, que seria mais útil servimo-nos de uma compreensão menos redu-
tora das sucessivas formalizações jurídicas do aborto. Levando-as a sério,
(4) Laurent Thévenot, na continuidade do seu trabalho com Luc Boltanski sobre o julgamento público
(BOLTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. op. cit.), desenvolveu uma metodologia original centrada
no julgamento sobre a “ação-que-convém”, isto é, sobre a integração da ação em determinados
formatos de julgamento comum. THEVENOT, Laurent. L’action au pluriel: Sociologie des régimes
d’engagement. Paris: La Découverte, 2006. Para uma apresentação em português da sociologia
desenvolvida por Laurent Thévenot e o grupo de pesquisadores que trabalham com ele: MOTA, Fabio
Reis. Deslocamentos, movimentos e engajamentos: as formas plurais da ação humana na perspec-
tiva de Laurent Thévenot. Revista Antropolítica, Niterói, n. 23, 2008.
(5) THEVENOT, Laurent. op. cit., p.157-181.
(6) Expressão cunhada por Michel Foucault, para descrever as teorias que consideram a ação do
poder sobre a sexualidade como essencialmente limitativa e negativa. Ao contrário, o filósofo
chamou a atenção sobre os efeitos produtivos e incitativos do poder, em relação à constituição do
sujeito moderno. FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard,
1976. p. 18 et seq.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 10, n. 3 p. 39-72 Nov. 2009/Fev. 2010
Aborto Legal: Elementos Sociohistóricos para o Estudo do Aborto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT