O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas

AutorPriscila de Figueiredo Fonseca - Raisa D. Ribeiro - Siddharta Legale
CargoProfessor de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ, Brasil) - Professora de Teorias do Estado e da Constituição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ, Brasil) - Pós-graduada em Gestão de Marketing pela Escola ...
Páginas103-135
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Licensed under Creative Commons
O aborto no sistema interamericano de direitos
humanos: contribuições feministas
The abortion in the Inter-American Human
Rights System: feminist contributions
SIDDHARTA LEGALE I, *
I Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)
siddhartalegale@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7472-3469
RAISA D. RIBEIRO II, **
II Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)
raisaribeiro@hotmail.com
http://orcid.org/0000-0003-2339-3903
PRISCILA SILVA FONSECA I, ***
I Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)
priscilaonseca@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-4638-3364
Recebido/Received: 10.03.2022 / March 10th, 2022
Aprovado/Approved: 24.04.2022 / April 24th, 2022
Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v9i1.85017
Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022. 103
Como citar esse artigo/How to cite this article: LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raisa D.; FONSECA, Priscila Silva. O aborto no sistema
interamericano de direitos humanos: contribuições feministas. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 9, n. 1,
p. 103-135, jan./abr. 2022. DOI: 10.5380/rinc.v9i1.85017.
* Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (Rio de Janeiro-RJ, Brasil). Professor Visitante do Mestrado em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Coordenador da Casoteca, da Clínica IDH e do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH – FND/UFRJ). Pós-Dou-
tor e Doutor em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito Constitucional
e Bacharel em Direito pela UFF. Advogado. E-mail: siddhartalegale@hotmail.com.
** Professora de Teorias do Estado e da Constituição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ,
Brasil). Doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD-UFRJ). Mestra em
Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF). Especializada em Direitos Humanos pela Universi-
dade de Coimbra (UC-Portugal). Coordenadora dos projetos “Feminismo Literário” e “Feminismo Interamericano”. Pesquisadora
do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH-FND/UFRJ). E-mail: raisaribeiro@hotmail.com.
*** Pós-graduada em Gestão de Marketing pela Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro-RJ,
Brasil). Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Direito pela Universidade
Veiga de Almeida (UVA). Jornalista. E-mail: priscilaonseca@gmail.com.
SIDDHARTA LEGALE | RAISA D. RIBEIRO | PRISCILA SILVA FONSECA
Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022.
104
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Aborto interamericano: direitos humanos fundamentais envolvidos; 3. O feminis-
mo interamericano como premissa para análise dos casos do sistema interamericano; 4. Os casos da
CIDH e da Corte IDH ans com a problemática do aborto; 4.1. Caso Baby boy vs Estados Unidos (1981);
4.2. Caso Artavia Murillo e outros vs Costa Rica (2012); 4.3. Caso Senhora Beatriz vs El Salvador (2013);
4.4. Caso Senhora I. V. vs Bolívia (2016); 4.5. Caso Manuela vs El Salvador (2021); 5. Apontamentos nais;
5.1. Há mesmo um direito à vida do feto?; 5.2. Qual o signicado de “concepção” no momento em que
foi aprovada a CADH e hoje?; 5.3. que a lei deve proteger? O que signica “em geral”?; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O aborto inseguro é uma das principais causas de morte materna e de morbida-
de severa na América Latina e na maioria dos países em que a prática é penalizada. A
mortalidade de mulheres que abortam em um contexto de legalidade é de uma morte
para cada 100.000 (cem mil) abortos. Já em contextos de ilegalidade a proporção é sig-
nicativamente maior: 1.000 (mil) mortes para cada 100.000 abortos (cem mil)1.
1 JOHNSON, Niki; GÓMEZ, Alejanda López; SAPRIZA, Graciela; CASTRO, Alicia; ARRIBELTZ, Gualberto. (Des)
penalización del aborto en Uruguay: prácticas, actores y discursos: abordaje interdisciplinario sobre una
realidad compleja. Montevideo: CSIC, 2011.
Resumo
O presente artigo busca vericar como tem sido o po-
sicionamento da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (Corte IDH) enquanto órgãos de proteção aos
direitos humanos no que se refere ao direito ao aborto.
No âmbito da CIDH, foram analisados os direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres nos casos: Baby Boy vs. Es-
tados Unidos (1981). Em relação à Corte IDH, foram dis-
secados os casos: Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012);
Senhora Beatriz vs. El Salvador (2013); Senhora I.V. vs. Bo-
lívia (2016) e Manuela vs. El Salvador (2021). As análises
adotam pressuposto teórico o feminismo interamerica-
no - movimento teórico, social e político que pressiona
o diálogo entre o sistema nacional e sistema interame-
ricano para garantir os direitos humanos das mulheres e
promover a igualdade de gênero. Trata-se de um diálogo
crítico que, de um lado, identica os padrões interame-
ricanos para cobrar padrões nacionais mais elevados de
proteção aos direitos humanos e, de outro, procura ree-
tir sobre a necessidade de aprimorar os standards acerca
da descriminalização do aborto na América Latina.
Palavras-chave: sistema interamericano de direitos
humanos; feminismo interamericano; direitos humanos
das mulheres; direitos sexuais e reprodutivos; direito ao
aborto.
Abstract
This article intends to verify the position of the Inter-Amer-
ican Commission on Human Rights (IACHR) and the In-
ter-American Court of Human Rights (IHC Court) about the
right to abortion. About the competence of IACHR, it will
be analyzed the case Baby Boy vs. United States (1981). In
relation to the Inter-American Court, it will be analyzed the
following cases: Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012); Ms.
Beatriz vs. El Salvador (2013); Ms. I.V. vs. Bolívia (2016) and
Manuela vs. El Salvador (2021). We start from the assump-
tion of inter-American feminism – theoretical, social and
political movement that presses for dialogue between the
national system and the inter-American system to guaran-
tee women´s rights and promote gender equality. It is a crit-
ical dialogue that, on the one hand, identies inter-amer-
ican standards for demanding higher national standards
for the protection of human rights and, on the other hand,
seeks to reect on the need to improve standards on the de-
criminalization of abortion in Latin America.
Keywords: inter-American human right´s system; in-
ter-American feminism; women´s rights; sexual and repro-
ductive rights; right to abortion.
O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas
Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022. 105
Em um cenário em que o próprio Estado, através de legislações restritivas, torna-
-se responsável por violações aos direitos humanos das mulheres, a negação ao direito
ao aborto se enquadra como uma situação institucional que gera a negligência estatal
e sua atuação de forma contrária ao disposto na Convenção Americana de Direitos Hu-
manos (CADH) e demais diplomas internacionais de proteção aos direitos humanos.
Esse artigo busca vericar como tem sido o posicionamento da Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos (Corte IDH) enquanto órgãos de proteção aos direitos humanos sobre a possi-
bilidade de defender um direito ao aborto com base no bloco de convencionalidade
interamericano.
O ponto de partida é o art. 4 da CADH2, único documento internacional de direi-
to humanos em que a proteção da vida pré-natal aparece de algum modo, como des-
taca Dinah Shelton3. Pela literalidade do dispositivo, o direito à vida deve ser protegido
pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Assim, questionamos: há mesmo
um direito à vida do feto? E a partir de qual momento? O que a lei deve proteger? O que
signica “em geral”? Qual era o signicado de “concepção” quando foi aprovada a CADH
e qual deve ser a sua interpretação nos dias de hoje?
Há mais dúvidas do que respostas passíveis de serem extraídas da literalidade
da CADH. As respostas a essas questões e sobre os parâmetros interamericanos a res-
peito pressupõem uma análise de, pelo menos, cinco casos da CIDH e da Corte IDH4:
Baby Boy vs. Estados Unidos (CIDH, 1985)5; Artavia Murillo vs. Costa Rica (Corte IDH,
2012)6-7; Senhora Beatriz vs. El Salvador (Corte IDH, 2013)89; Senhora I.V. vs. Bolívia (Corte
2 Para uma análise crítica desse dispositivo, cf.: CITTADINO, Rodrigo Cerveira. Comentários ao art 4º - Direito
à vida. In: LEGALE, Siddharta; VAL, Eduardo Manuel; VASCONCELOS, Raphael; GUERRA, Sidney (Orgs). Comen-
tários à Convenção Americana de Direitos Humanos. Curitiba: Instituto Memória, 2019, p. 71 et seq.
3 SHELTON, Dinah. International law on protection of fetus. In: FRANKOWSKI, Stanislaw J.; COLE, George F.
(orgs) Abortion and protection of human fetus: legal problems in a cross-cultural perspective. Boston: Mar-
tinus Nijho Publishers, 1987, p. 1 et seq.
4 Destacamos que os casos interpretando o art. 4.1. da CADH são raros, cf. CAVALLARO, James; VARGAS,
Claret; SANDOVAL, Clara; DUHAIME, Bernard (Coord.) Doctrine, practice, anda advocacy in interamerican
human rights system. New York: Oxford University Press, 2019, p. 397 et seq.
5 OEA; CIDH; Relatório nº. 23/81; Caso 2141 (Caso Baby Boy y Otros Vs. Estados Unidos). 1981.
6 OEA. Corte IDH. Sentença. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) Vs. Costa Rica, 28 de no-
vembro de 2012. Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf Acesso
em 21 maio 2022.
7 Para uma análise crítica deste caso, vale a pena cf.: BOLDT, Marilha. Artavia Murillo y otros (fecundación in
vitro) vs. Costa Rica (2012): A proibição da fertilização in vitro como violação dos direitos humanos. In: RIBEIRO,
Raisa D.; LEGALE, Siddharta (Coords.) Feminismo Interamericano: exposição e análise crítica dos casos de
gênero da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. NIDH/Feminismo Literário, 2022, p. 186-191.
8 OEA. CIDH. Informe de Admissibilidade nº 120/17, petição 2003-13 (Caso Beatriz vs. El Salvador); 2017.
Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/2017/ESAD2003-13ES.pdf Acesso em 21 maio 2022.
9 Para uma análise crítica deste caso, vale a pena cf.: VILLELA, Ana Beatriz R. B.; GUIMARÃES, Letícia B.. Beatriz
vs. El Salvador (2013): medidas provisionais da Corte IDH para interromper gestação de alto risco para a vida da
gestante. In: RIBEIRO, Raisa D.; LEGALE, Siddharta (Coords.) Feminismo Interamericano: exposição e análise

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT