O Abuso nas patentes de medicamentos

AutorFábio Konder Comparato
Páginas204-219
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COMENTÁRIO
O ABUSO NAS PATENTES DE MEDICAMENTOS
DRUGS PATENTS ABUSE
Fábio Konder Comparato(*)
1. Objeto das presentes reflexões é o exame da compatibilidade das
1996, que “regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial”,
com o sistema constitucional brasileiro.
Para que se possa, com pleno conhecimento de causa, examinar essa
questão, agora tornada litigiosa com a propositura pelo Ministério Público
Federal de uma ação direta de inconstitucionalidade, importa ter em mente,
com suficiente clareza, o regime constitucional da matéria regulada pela
I. NATUREZA JURÍDICA DAS PATENTES E
SEU REGIME CONSTITUCIONAL
2. Até o advento da vigente Lei n. 9.279, de 1996, o direito positivo bra-
sileiro englobava, sob a designação genérica de “propriedade industrial”, os
inventos industriais, denominados privilégios, e os sinais distintivos, isto é, as
marcas, as expressões ou os sinais de propaganda. O vigente diploma legal
sobre a matéria passou a designar como patentes as invenções e os modelos
de utilidade, não mais empregando a expressão privilégios industriais.
Um pressuposto lógico para o exame constitucional dessa matéria é a
definição da natureza jurídica dos inventos industriais que a Lei n. 9.279
denomina genericamente patentes.
(*) Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor pela Université
Paris IV (Sorbonne) e Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. São Paulo/SP-Brasil. Recebido
em 19.05.10.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 11, n. 3 p. 204-219 Nov. 2010/Fev. 2011
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1. Natureza jurídica das patentes
3. As primeiras atribuições de patentes de invenção ocorreram no século
XV, nas cidades italianas onde se organizou, pioneiramente, a economia
capitalista. Em 1421, a República de Florença concedeu a um inventor o
direito exclusivo de exploração de sua invenção. Uma ordenação editada
em Veneza, em 1474, regulou de modo geral a atribuição de patentes.
Mas o verdadeiro nascimento daquele que ao depois veio a ser chamado
direito industrial ocorreu com a edição pelo Parlamento inglês, em 1623, do
Statute of Monopolies, pelo qual todo inventor de artefatos técnicos era
equiparado a um mestre de ofícios da comunidade. A lei concedia-lhe, em
consequência, a título de remuneração, o direito exclusivo de fabricação e
venda de sua criação técnica, desde que revelada ao público a inovação.
Esse direito era necessariamente temporário, e correspondia ao dobro do
tempo de aprendizado em uma corporação de ofícios, vale dizer, quatorze
anos. O inventor podia também autorizar alguém a se utilizar da invenção,
mediante o pagamento de uma espécie de aluguel (royalty).
Como se percebe, o instituto não foi concebido em sua origem como
propriedade (ownership), mas como monopoly, que o conceituado Black’s
Law Dictionary(1) assim define: “a privilege or peculiar advantage vested in
one or more persons or companies, consisting in the exclusive right (or power)
to carry on a particular business or trade, manufacture a particular article, or
control the sale of the whole supply of a particular commodity”.
4. A ideia de se reconhecer aos inventores industriais um direito de
propriedade sobreveio mais de um século depois, e fundou-se na importância
extraordinária atribuída a esse direito no ambiente revolucionário burguês
do final do século XVIII. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
aprovada pela Assembleia Nacional francesa em 1789, considerou a
propriedade “um direito inviolável e sagrado”. Ainda na França, a Declaração
de Direitos da Constituição jacobina de 1793 estatuiu que “o direito de
propriedade é o que pertence a todo cidadão, para a fruição e disposição,
como ele bem entender, de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu
trabalho e de sua indústria” (art. 16).
Encontramos aí o eco da doutrina afirmada um século antes por John
Locke no § 27 do Second Treatise of Government, segundo a qual tudo quanto
o homem extrai da natureza, e transforma pelo seu trabalho, pertence-lhe
por direito natural a título de domínio.
5. Bem analisadas as coisas, porém, percebe-se que essa qualificação
jurídica é errônea.
(1) BLACK’S Law Dictionary. 4. ed. rev. St. Paul: West Publishing, 1951.
Revista de Direito Sanitário, São Paulo v. 11, n. 3 p. 204-219 Nov. 2010/Fev. 2011
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