O acesso à justiça como direito fundamental e a construção da democracia pelos meios alternativos de solução de conflitos

AutorIvan Martins Tristão; Zulmar Fachin
Páginas47-64

    Artigo derivado da dissertação de mestrado do autor Ivan Martins Tristão, com orientação do prof. Dr. Zulmar Fachin e co-orientação da prof. Dra. Tânia Lobo Muniz, doutoranda em Direito Público na Universidade de Sevilla, Espanha.

Ivan Martins Tristão;. Mestrando em Direito Negocial (UEL), com ênfase em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Empresarial (UEL). E-mail: ivantristao@hotmail.com.

Zulmar Fachin. Doutor em Direito Constitucional (UFPR). Mestre em Direito (UEL). Mestre em Ciências Sociais (UEL). Professor de Direito Constitucional na Universidade Estadual de Londrina e no CESUMAR (Centro Universitário de Maringá). Vice-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (Seção Paraná). Presidente Executivo do IDCC - Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Email: zulmarfachin@uol.com.br

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Introdução

A partir da concepção de que o acesso à Justiça é um princípio constitucional fundamental, tendo, com esta qualidade, grande carga valorativa a fundamentar as regras, irradiando sua efetividade em todo o ordenamento jurídico, inclusive na atividade legiferante, e considerando que o referido princípio se constitui num elemento importante ao exercício da cidadania, muito se discute sobre as formas para sua ampliação e efetivação democrática.

Nesse contexto, de necessidade de acesso à Justiça como garantia à promoção da ordem jurídica justa, se insere o questionamento sobre a opção e a utilização de meios alternativos para solução de conflitos. O monopólio estatal exercido pelo Poder Judiciário não deve ser a única opção para resolver os litígios, pois a construção da democracia exige que o cidadão possa escolher outros mecanismos que sejam legítimos, para que desta forma se atenda aos anseios da sociedade.

Com o escopo de demonstrar esta proposição, será demonstrado que os princípios e as regras são espécies de normas, sendo, por oportuno, apontadas as distinções entre eles, para, em seguida, ser respondido se o acesso à Justiça é um princípio ou uma regra, até mesmo porque esta exata noção causa diferença na efetividade deste direito fundamental.

Com base nos fundamentos alcançados, notadamente de que o acesso à Justiça é um princípio constitucional fundamental, um direito fundamental que se irradia por todo o ordenamento jurídico, parte-se para o debate do "enfoque de acesso à justiça" e o exercício da cidadania, visando, ao final, demonstrar que cada um dos meios alternativos de solução de conflitos são vias democráticas para ampliação e efetivação do acesso à Justiça.

1 Princípios e regras

Ao enfrentar as questões envolvendo princípios e regras não se pode olvidar da análise de José Joaquim Gomes Canotilho. Este, tendo como ponto de partida o direito constitucional português, aponta conclusões que são gerais e aplicáveis ao instituto em outros ordenamentos, tal como no ordenamento jurídico pátrio.

Em primeiro lugar, o jurista português frisa que a teoria jurídica tradicional distinguia normas e princípios, porém, ele abandona essa concepção para em sua substituição sugerir que: "(1) – as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) – a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas." (CANOTILHO, 1993, p. 166). Vale ressaltar que osPage 49 princípios são normas ainda que implícitos, vinculando e impondo deveres. (WAMBIER, 2007, p. 68).

Paulo Bonavides (2002), após analisar pormenorizadamente a evolução doutrinária referente à normatividade dos princípios, também conclui que "os princípios são normas e as normas compreendem igualmente os princípios e as regras" (p. 243). A doutrina reconhece que a teoria dos princípios se converteu no coração das Constituições (BONAVIDES, 2002, p. 253) depois de consagrada sua normatividade, a qual provém, essencialmente, da superação do embate clássico entre Direito Natural/Positivo (BONAVIDES, 2002, p. 247).

Mas, e a diferença entre princípios e regras? Esta análise é uma tarefa complexa, pois vários critérios são propostos para se tentar chegar a um resultado aceito, por exemplo: "grau de abstração, grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto, caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito, proximidade da idéia do direito, natureza normogenética" (CANOTILHO, 1993, p. 166-7).

Embora relevante cada um desses critérios, Canotilho (1993) frisa o caráter multifuncional dos princípios e apresenta uma diferenciação qualitativa, baseada nos seguintes aspectos:

(1) – os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-ornothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky); a convivência de regras é antinômica. Os princípios coexistem; as regras antinômicas excluem-se; (2) – conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à 'lógica do todo ou nada'), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço pra qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos; (3) – em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas 'exigências' ou 'standards' que, em 'primeira linha' (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm 'fixações normativas' definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias; (4) – os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas). (p. 167-8).

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Bonavides lembra que Alexy instituiu a distinção entre regras e princípios, a qual é essencialmente semelhante à de Dworkin. Os critérios utilizados são muitos, sendo o mais freqüente o da generalidade, pelo qual "os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade relativa, ao passo que as regras, sendo também normas, têm, contudo, grau relativamente baixo de generalidade" (BONAVIDES, 2002, p. 249), entretanto, Bonavides também julga correta a distinção da qualidade.

Willis Santiago Guerra Filho, com semelhança à diferenciação delineada por Canotilho, assevera que regras e princípios distinguem-se quanto à sua estrutura lógica e deontológica, bem como quanto à técnica de aplicação1. Vale anotar que alguns autores ao fazerem o cotejo entre eles apontam inovações quanto ao tema, tal como Humberto Ávila ao distinguir as normas em princípios, regras e postulados2.

Como visto logo mais acima, existe sim uma diferenciação qualitativa entre princípios e regras, o que não significa que eles se excluem, ao contrário, devem coexistir, pois um sistema composto somente de princípios seria falho de segurança jurídica, ante a complexidade gerada pela possibilidade de existência de conflitos entre eles, e, de outro norte, um sistema exclusivamente de regras acarretaria num legalismo indesejado, por não possibilitar a introdução de "balanceamento de valores e interesses de uma sociedade pluralista e aberta" (CANOTILHO, 1993, p. 169).

Os princípios são necessários ao sistema jurídico principalmente porque exprimem valores, o que implica dizer que viabilizam a introdução dePage 51 ponderações e interpretações atuais sobre os conflitos de uma dada sociedade e, por isso, "são o fundamento de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite 'ligar' ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional" (CANOTILHO, 1993, p. 169).

Por isso tudo, Canotilho defende que a existência de regras e princípios viabiliza a compreensão da constituição como um sistema aberto de regras e princípios, de diferente grau de concretização e desenvolvimento. Análise bastante utilizada no Brasil como suporte para explicar o pós-positivismo (GUERRA FILHO, 2001, p. 147), em razão da visão principialista do sistema constitucional3.

Portanto, as regras e os princípios são espécies de normas, se distinguindo, especialmente, qualitativamente, em razão dos princípios possuírem grande carga valorativa, além de serem fundamentos das regras e irradiarem sua força normativa por todo sistema constitucional e, por conseguinte, toda legislação infraconstitucional.

2 O acesso à justiça é um princípio ou uma regra?

Com base na tipologia de princípios e regras no âmbito constitucional formulada por Canotilho4, tem-se que o acesso à Justiça é um princípio jurídico fundamental5. Estes, "pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo" (CANOTILHO, 1993, p. 171) e, ainda,

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[...] fornecem sempre directivas materiais de interpretação das normas constitucionais. Mais do que isso: vinculam o legislador no momento legiferante, de modo a poder dizer-se ser a liberdade de conformação legislativa positiva e negativamente vinculada pelos princípios jurídicos gerais. (CANOTILHO, 1993, p. 171-2).

Com efeito, e considerando as distinções já apresentadas, não se pode negar que o acesso à justiça é um verdadeiro princípio constitucional no ordenamento brasileiro. Conforme Sérgio Alves Gomes, "princípios constitucionais são normas jurídicas fundamentais que servem de sustentação às regras constitucionais, bem como aos princípios e...

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