Acesso à justiça e tutela dos interesses difusos

AutorEduardo A. Braga Bacal
CargoMestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Portugal
Páginas262-291

Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra, Portugal. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Procurador da Ordem dos Advogados do Brasil -Seccional do Rio de Janeiro. Advogado do escritório Azevedo Sette

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Introdução

Como é notório, o processo vem sofrendo profundas transformações para atender às mudanças que se operaram no âmbito da sociedade. Alguns fatores, como a revolução industrial e, sobretudo, a produção em série que ela ocasionou, aos quais se acrescenta o aumento explosivo da população, nunca antes visto na humanidade, deram origem às relações de massa 1.

Neste contexto, o processo teve que se ajustar à nova realidade das relações (e conflitos) de massa, o que acarretou consequências para a tutela dos interesses difusos. Na realidade, o processo construído sob o pressuposto individualista e tradicional, apropriado para resolver conflitos do tipo Tício versus Caio, passou a mostrar-se precário para dar uma resposta satisfatória à complexidade das questões que se engendram nos litígios de massa, a exemplo do que ocorre em diversas ações que visam à tutela do meio ambiente e dos direitos dos consumidores. Page 263

Sendo assim, de pouco valeria a consagração meramente formal de direitos fundamentais de caráter difuso se o Estado não fosse dotado dos instrumentos próprios para assegurar, efetivamente, os meios de proteção desses direitos. Para tal efeito, o direito processual atua com indiscutível importância, visto que fornece o conjunto de instrumentos 2 com vista à concretização do direito material e comporta um elemento intrínseco de pacificação social dos conflitos que se instauram no cotidiano, fruto dos antagonismos que surgem à medida que os cidadãos são titulares de um extenso rol de direitos, deveres e garantias.

Nesta medida, optamos por tecer algumas considerações sobre a evolução do direito de acesso à justiça que culminou, em uma de suas fases, na "onda" 3 relativa à proteção dos interesses difusos, dada a sua permanente importância adquirida em uma sociedade de massa, nos termos acima referenciados.

Situar a importância dos interesses difusos ou meta-individuais supera, em muito, uma preocupação meramente acadêmica ou dogmática. Objetiva-se, acima de tudo, contribuir para que o cidadão comum, antes mais frágil frente à violação de direitos que se operava, sobretudo, no plano individual, compreenda o alcance atual dos denominados interesses difusos, a possibilidade de acesso à justiça para postular a sua defesa e, por fim, quais as principais dificuldades que se vislumbram na sua concretização.

Considerações iniciais sobre o direito de acesso à justiça

Várias designações são frequentemente empregadas de forma análoga ao acesso à justiça, a exemplo do "Direito à jurisdição", do "processo equitativo", do "devido processo legal", ou, em outros quadrantes geográficos, do debido proceso, do due process of law, do giusto processo e do faires Verfahren, todos aludindo, segundo o autor, ao "direito a um procedimento axiologicamente condicionado". Page 264

Seja como for, em todas as vertentes assinaladas predomina o consenso, sobretudo na doutrina norte-americana e na dos países da Europa ocidental, de acordo com o qual é imprescindível a existência da chamada justiça processual, cujo critério deve, assim, orientar todos os ordenamentos jurídicos em matéria de processo 4.

Cabe-nos esclarecer, no entanto, que a expressão acesso à justiça não deve ser usada como sinônimo de devido processo legal, ou "processo equitativo", uma vez que se trata de conceitos semelhantes, porém distintos.

Ao contrário do acesso à justiça, o devido processo legal se identifica, segundo ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, com a idéia de um processo justo, no qual seja assegurado aos litigantes um processo pautado por "um tratamento isonômico, num contraditório equilibrado, em que se busque um resultado efetivo, adaptado aos princípios e postulados da instrumentalidade do processo" 5.

Na esteira que reconhece no acesso à justiça um conteúdo marcadamente conexo à justiça social, encontramos a posição de MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH, cujos estudos precursores são de extrema relevância para compreender-se a dimensão contida na garantia constitucional de acesso à justiça. Em consonância com os seus ensinamentos, "A expressão 'acesso à Justiça' é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico - o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado" 6.

Em sentido próximo, citamos a classificação levada a cabo por ANTÔNIO HERMAN V. BENJAMIN, para quem a expressão acesso à justiça é digna de três enfoques básicos. Numa visão mais restrita, contempla apenas o acesso à tutela jurisdicional, isto é, a composição dos litígios mediante a via judicial, razão pela qual se inscreve apenas no universo do processo.

Num sentido mais amplo, diz respeito a um espectro mais alargado, atinente à tutela de direitos ou interesses violados, seja mediante os recursos jurídicos mais variados ou não. Tanto em um caso como no outro, os instrumentos de acesso à justiça podem ter natureza Page 265 preventiva, repressiva ou reparatória. Por último, numa conotação integral, tratar-se-ia do acesso ao Direito, a uma ordem jurídica justa, em que o acesso à justiça se confunde com o próprio acesso ao poder 7.

Ainda assim, os referidos autores admitem que o conceito teórico do indigitado direito tem-se mostrado suscetível a permanente evolução, o que demanda uma nova abordagem no estudo do processo civil. A princípio, o acesso à proteção judicial tinha como correlato o direito de ação, associado, portanto, a um direito formal do indivíduo. Na linha do sistema que regia o laissez-faire, ao Estado não importava a incapacidade de muitas pessoas utilizarem plenamente a justiça e as suas instituições, as quais constituíam um privilégio daqueles que pudessem arcar com os seus elevados custos 8.

As mudanças ocorridas nesse cenário decorrem, em grande parte, do advento do novo modelo econômico introduzido pelo Estado Social (Welfare State), mais ajustado à nova realidade social, marcada por uma acentuada complexidade e massificação. Inicia-se, portanto, uma nova fase, cuja nota, sem dúvida emblemática, é o reconhecimento de direitos 9 e deveres sociais por parte dos governos, comunidades, associações e indivíduos.

Sob os auspícios desse movimento, os indivíduos passam a gozar de novos direitos substantivos na qualidade de consumidores, locatários, empregados e titulares do direito ao ambiente; e, em tal contexto, passou a atuar a garantia de acesso à justiça dos cidadãos, a fim de que esses direitos não fossem meras proclamações, mas sim direitos efetivos, capazes de serem realizados frente às instituições integrantes da justiça 10.

Estabelecidas as linhas básicas acerca da evolução teórica do conceito de acesso à justiça, impende referenciar os dois princípios que consubstanciam o substrato jurídico-constitucional Page 266 relativo ao acesso à justiça: a dignidade da pessoa humana e o Estado de Direito 11.

Comecemos pelo primeiro. Partindo do pressuposto de que a pessoa humana constitui a finalidade precípua e legitimadora de todo o arcabouço jurídico, levando CASTANHEIRA NEVES a sustentar que "o direito não pode sequer pensar-se se não for pensado através da pessoa e para a pessoa" 12, emerge indubitável o papel desempenhado pela dignidade da pessoa humana, a qual serve como fundamento para a própria Constituição Federal.

Tendo isto em mente, revela-se inconcebível que os indivíduos não disponham dos meios necessários para reivindicar a prestação jurisdicional junto aos órgãos competentes por ela responsáveis. Por outros termos, somente poder-se-á falar de dignidade da pessoa humana em um regime no qual os cidadãos contem com os mecanismos de acesso ao Poder Judiciário para fazer valer os seus direitos, notadamente aqueles direitos que gozam de especial relevo constitucional, tal como o meio ambiente, erigido à qualidade de direito fundamental 13.

Quanto ao segundo princípio, tampouco há dúvidas sobre a sua ligação indissolúvel com o Estado de Direito. Se partirmos da premissa de que o Estado, na sua concepção pósmoderna, é um Estado de direito democrático, afirmação da qual resulta a estreita articulação entre o Estado de Direito e a Democracia, inevitável constitui também Page 267 consignar a ligação entre Estado de Direito e o acesso à justiça para a proteção dos mais básicos direitos 14.

Ora, se a defesa dos direitos fundamentais e, consequentemente, o acesso à justiça para a sua efetiva realização, é condição necessária para a sobrevivência da Democracia 15, é-o também para o Estado de Direito. Uma afirmação naturalmente conduzirá à outra, em consonância com um argumento lógico-jurídico.

Nesse sentido, RONNIE PREUSS DUARTE sustenta que "não se pode falar, absolutamente, em Estado democrático de direito sem que aos cidadãos seja garantida, em toda sua plenitude, a possibilidade de, em igualdade de condições, socorrer-se aos tribunais para a tutela das respectivas posições jurídicas subjetivas. Cuida-se do direito geral de proteção jurídica, cujo asseguramento é dever inarredável do Estado em face dos cidadãos sendo, ainda, uma imposição do ideal democrático" 16.

As três ondas...

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