Art. 78, § 2º do ADCT: Uma Nova Modalidade de Compensação Tributária

AutorHelton Kramer Lustoza; João Paulo Souza Carneiro
CargoGraduado em Direito pelo Centro de Estudos Positivo - Unicenp, Procurador do Estado de Santa Catarina
Páginas5-9

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1. Da compensação do Direito Civil à compensação com precatórios

A compensação é um instituto tradicional do Direito das Obrigações, sendo que seu locus original está pautado no Direito Civil, que lhe deu identidade e as notas caracterizadoras.

Nesse sentido, Sílvio Rodrigues identifica esse instituto "como um meio de extinção das obrigações e opera pelo encontro de dois créditos recíprocos entre as mesmas partes. Se os créditos forem de igual valor, ambos desaparecem integralmente; se forem de valores diferentes, o maior se reduz à importância correspondente ao menor"1.

Em outras palavras, é uma forma de pagamento, através do qual haverá a extinção da obrigação entre duas pessoas pelo encontro de créditos e débitos, limitado o efeito extintivo à menor das obrigações.

Do Direito Civil, o instituto da compensação foi transplantado para o Direito Tributário, dentro do qual assumiu feições próprias, compatíveis com um caráter publicístico - não à toa, para diferenciá-la da disciplina dada pela legislação civil, Sacha Calmon chama-a de compensação fiscal.

O que mais evidencia a especificidade dada a essa extinção obrigacional no âmbito tributário é que essa matéria está disciplinada pela Carta Magna, sendo que o artigo 146, III, b, da Constituição Federal previu caber somente a lei complementar regular as normas gerais sobre a obrigação e crédito tributário2.

Seguindo essas diretrizes constitucionais, a compensação tributária atualmente é regulamentada pelo artigo 170 do Código Tributário Nacional (legislação recepcionada com força de Lei Complementar), a qual fixou algumas particularidades:

"Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública." (Grifos nossos)

Esse dispositivo legal estabelece três premissas para que esse instituto seja operado no Direito Tributário: 1) a existência de uma lei disciplinadora; 2) a utilização de créditos tributários; e 3) a presença da Fazenda Pública.

Desenhadas essas distinções, observa-se a existência de uma nova possibilidade de pagamento de débitos tributários, estabelecida pelo artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com modificação feita pela Emenda Constitucional nº 30, de 2000, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro uma nova espécie de extinção de obrigações, podendo este instituto ser qualificado como compensação constitucional, vez que seus contornos foram delineados de forma suficiente na Carta Magna. Assim dispõe esse dispositivo constitucional:

"Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos."

[...] § 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.

O dispositivo supratranscrito reza que os entes federativos deverão quitar as quantias referentes a precatórios pendentes até 13 de setembro de 2000 (data de promulgação da Emenda) e de ações ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo de 10 anos. Caso tal obrigação seja descumprida, os valores referentes às prestações inadimplidas poderão ser abatidos com débitos junto àquela entidade devedora.

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Afigura-se com clareza que a Constituição Federal institui uma hipótese de compensação, em enunciado que não está vinculado ao procedimento prescrito pelo art. 170 do Código Tributário Nacional.

Enquanto que a compensação prevista pelo CTN é uma norma de competência3, que confere ao legislador infraconstitucional a possibilidade de editar uma norma autorizadora de compensação mediante a utilização de créditos tributários, o dispositivo constitucional acima citado encerra uma norma sancionatória4, dirigida ao Estado-devedor que descumpre a norma de conduta5inscrita no caput do mesmo enunciado.

Em outras palavras, o art. 78, caput, impõe um comportamento ao Estado (um modal deôntico "obrigatório"): liquidar precatórios. Diante do descumprimento dessa obrigação, emerge a sanção: liberação dos valores desse precatório para pagamento com débitos perante a mesma entidade devedora.

Surge, assim, uma conduta substitutiva reparatória em favor do contribuinte-credor, em face da inadimplência do Estado-devedor, sendo que essa sanção será operacionalizada através da compensação.

Diante do descumprimento da norma de conduta a sanção incide de forma automática e infalível, não requerendo normatividade ulterior, pois contém em si todos os elementos necessários à plena eficácia6. Ao Estado-devedor (qualificado no dispositivo como "entidade devedora") só resta submeterse à norma punitiva e todos os seus preceitos, sob pena de violar a legitimidade do ordenamento jurídico, segundo entendimento de Hans Kelsen7.

Para que a referida norma contenha o necessário efeito sancionador, é fundamental que seja dotada de plena eficácia, para o fim de proteger o núcleo normativo da norma de conduta. Ora, ao se conceber que essa norma exige normatividade ulterior, está-se retirando dela o timbre sancionatório e a idoneidade de proteger a comportamento regulado, seria uma interpretação que defrauda a normatividade constitucional.

Além disso, há outro fator que demonstra a auto- aplicabilidade do art. 78, § 2º, do ADCT: a sua localização topográfica. Tendo como pressuposto que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias faz parte do texto constitucional, o artigo em foco é dotado de 'força normativa constitucional', sendo que ao criá-lo através da Emenda Constitucional 30/2000, colocou-o a salvo de qualquer legislação infraconstitucional que poderia restringir o seu alcance, imunizou-o, inclusive, da incidência do art. 146, III, b, da Constituição Federal, que exige Lei Complementar para disciplinar as normas gerais sobre obrigação e crédito tributário.

Cabe salientar que a norma em questão é de cunho constitucional, a qual segundo a doutrina de J. J. Gomes Canotilho8 deverá ser interpretada na busca da concretização do princípio da máxima efetividade dos preceitos, o que leva o operador jurídico a encontrar a interpretação que mais atenda ao interesse constitucional.

Demonstra-se, assim, que o art. 78, § 2º, do ADCT prevê uma compensação de caráter constitucional; longe de expressar a necessidade de intermediação legislativa, revela o contrário: essa espécie de extinção de obrigações está protegida pela força normativa da Carta Magna contra interferências do legislador ordinário.

Portanto, do exposto extrai-se a conclusão de que o ADCT estatui uma espécie de compensação constitucional auto-aplicável, que se diferencia da compensação fiscal do Direito Tributário por não requerer qualquer intermediação legislativa, criando uma estrutura sintática que estabelece uma relação de causa e efeito automática, infalível e perfeita.

2. Da quitação de tributos por meio de créditos oriundos de precatórios e algumas limitações feitas pela legislação infraconstitucional

Atualmente, é comum o contribuinte buscar mecanismos para tentar minimizar seus gastos com tributos, barrando assim a sanha arrecadadora do Estado. Como bem afirma Albert Hensel: "É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os...

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