ADPF das Favelas: mobiliza

AutorOsmo, Carla

Introdução (1)

Nos primeiros meses da pandemia de covid-19 no Brasil, a partir de março de 2020, territórios no estado do Rio de Janeiro (RJ) com mais dificuldade de praticar medidas de prevenção, com população empobrecida e em parte relevante sem trabalho formal, também viveram operações policiais que davam seguimento a uma escalada de violência, observada ao longo dos últimos anos. Dessa maneira, nesses locais, onde vivem majoritariamente pessoas negras (v. FLAUZINA; PIRES, 2020), a maior vulnerabilidade à letalidade do coronavírus veio a se associar a um crescimento no número de mortes violentas provocadas por agentes da segurança pública. Foi nesse momento que uma coalizão de organizações, movimentos e coletivos de favela do RJ obteve uma intervenção sem precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) na política de segurança pública do estado, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas.

A prática de violações graves de direitos humanos pelos órgãos incumbidos da política de segurança pública no Brasil não é algo novo, ou restrito ao RJ, embora esse estado tenha particularidades e índices especialmente altos de violência de Estado (2). Órgãos internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito da ONU (3) quanto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) vêm chamando atenção para a gravidade da questão. Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicado em 2021, constatou que a violência institucional no país não é um problema de desvios individuais. A própria política criminal, penitenciária e de segurança pública tem atuado de forma sistemática e generalizada para exterminar pessoas afrodescendentes, podendo "se aproximar, perigosamente, de processos que buscam extinguir, no todo ou em parte, as pessoas dessa origem étnico-racial" (OEA, 2021: [section] 33). A CIDH manifestou preocupação diante de evidências de que a situação vem se agravando, e destacou o papel na perpetuação dessa situação dos órgãos do sistema de justiça, que, ao mesmo tempo, atuam de forma a criminalizar e punir a população afrodescendente, e não levam adiante processos de investigação e responsabilização de crimes cometidos por agentes da segurança pública (4).

Abdias Nascimento (2016) escreveu em 1977 que há um projeto de Estado voltado à produção do desaparecimento, físico e cultural, do povo negro no Brasil, que, portanto, caracteriza o crime internacional de genocídio. A partir da experiência histórica de discriminação nas ações das polícias e no sistema penal, e da publicação de dados e estudos empíricos demonstrando os impactos desproporcionais das suas práticas em prejuízo da população negra, organizações do movimento negro passaram a denunciar as mortes provocadas por agentes da segurança pública como parte desse projeto genocida (RAMOS, 2014; RAMOS; TOMENASI, 2020; SINHORETTO; MORAIS, 2017). No mesmo sentido, académicos como Ana Flauzina têm produzido pesquisas que concluem ser "[...] possível visualizar o braço armado do Estado como um instrumento a serviço do controle e extermínio da população negra no país, o que, necessariamente, aponta para a existência de uma plataforma genocida de Estado" (FLAUZINA, 2006: 14).

Este estudo tem o objetivo de analisar a construção e os primeiros desdobramentos da ADPF das Favelas a partir do campo de estudos da mobilização do direito, que busca compreender o papel das táticas jurídicas entre as estratégias dos movimentos sociais. Em especial, intenciona-se investigar se a alteração no cenário político e social trazida pela calamidade da pandemia fez com que os atores envolvidos na ADPF das Favelas encontrassem espaço para as suas demandas no STF, o que a literatura da mobilização do direito chama de abertura de uma oportunidade jurídica. Tem-se a hipótese de que, não obstante a prévia situação gravemente violadora de direitos humanos, bem como o fato de que a luta social contra o racismo institucional e estrutural (5) e por um controle efetivo da atuação das polícias já exista há décadas, a tragédia da pandemia esteve entre os fatores que tornaram jurídica e politicamente possível a discussão da questão na cúpula do Judiciário brasileiro (6).

A pesquisa se insere em uma agenda de investigação das professoras-pesquisadoras autoras, nas temáticas da mobilização do direito por movimentos sociais e de respostas no campo dos direitos humanos em casos de violência institucional. Além disso, a aproximação ao processo de construção da ADPF pareceu, e de fato se revelou, instrutiva para uma reflexão, como a que temos realizado ao estruturar ações extensionistas como docentes na Unifesp, sobre como desenvolver ações coletivas relevantes na área dos direitos humanos, envolvendo movimentos sociais e universidade.

O artigo está dividido em 5 seções. Primeiramente, apresenta-se o referencial teórico, sobre mobilização do direito e oportunidades jurídicas (seção 1) e se expõe a metodologia utilizada (seção 2). Em seguida, são examinadas ações judiciais movidas em outros foros, que se revelaram importantes para que a ADPF das Favelas pudesse acontecer no STF: o caso Favela Nova Brasília no SIDH e a Ação Civil Pública (ACP) da Maré, na justiça estadual do RJ (seção 3). Passa-se então a analisar a ADPF das Favelas, com foco na forma como se dá a sua construção, a adesão das ONGs, movimentos sociais e coletivos de favela, e a organização desses em torno da ação (seção 4), e nos desdobramentos da ADPF no contexto da pandemia de covid-19 (seção 5). Ao final, apresentam-se as considerações finais, destacando-se os principais achados da pesquisa (seção 6).

  1. Mobilização do direito e oportunidades jurídicas

    Este artigo se insere no conjunto de investigações que buscam analisar a relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário, e se baseia principalmente no referencial teórico da mobilização do direito, desenvolvido a partir do trabalho de Michael McCann (1994; 2006; 2008). Tal campo de estudos procura compreender o papel que as táticas jurídicas desempenham no conjunto mais amplo de estratégias empregadas por movimentos sociais em sua luta política. Ele tem como aspecto central a busca por interligar pesquisas sociojurídicas, focadas nas cortes e em suas decisões, com pesquisas sobre movimentos sociais, focadas na mobilização coletiva de atores sociais, e que até então pouco dialogavam entre si.

    Essa tradição de estudos compreende o direito de forma expandida e não apenas do ponto de vista formal. Assim, para ela, o direito não é composto somente por normas jurídicas, leis e decisões judiciais, mas também é uma reunião de significados que intermedia as práticas e relações sociais, ao mesmo tempo que é constituído por meio delas (McCANN, 1994, 2006). Tendo em vista essa ideia, as pesquisas sobre mobilização do direito buscam compreender não só os efeitos diretos que leis e decisões judiciais têm sobre as demandas dos movimentos sociais, mas também seus efeitos indiretos na mobilização desses grupos. Para tanto, elas adotam uma "abordagem de baixo para cima" (bottom-up approach), deslocando o centro da investigação do Poder Judiciário e suas decisões para os atores dos movimentos sociais (McCANN, 1994).

    O campo de estudos sobre a mobilização do direito compreende as estratégias jurídicas, entre elas o litígio nos tribunais, como uma parte de campanhas multidimensionais dos movimentos sociais na busca pela concretização de suas demandas (LEVITSKY; 2007, 2015). Táticas que mobilizam o direito são um dos recursos possíveis que tais grupos podem lançar mão, em meio a diversas outras estratégias (combinadas ou não com estratégias jurídicas). Soma-se a isso a compreensão de que o direito pode ser mobilizado pelos movimentos sociais não somente por meio de ações judiciais, mas de várias outras formas, como quando buscam a criação ou revogação de uma lei, quando usam linguagem do direito para a construção de suas demandas, em protestos, ou em negociações informais, por exemplo.

    A partir dos anos 2000, surge no contexto desta agenda de pesquisa a noção de "estrutura de oportunidade jurídica" (legal opportunity structure), que aprofunda o diálogo já existente entre os campos de estudos sociojurídicos e sobre movimentos sociais. Ela é um desdobramento da noção de oportunidade política, ferramenta analítica desenvolvida no contexto da Teoria do Processo Político (TPP). De forma sintética pode-se dizer que a TPP busca investigar a influência que fatores externos aos movimentos sociais têm em sua organização, na definição de demandas e estratégias, e na possibilidade de realizá-las ou não. A TPP analisa os movimentos sociais no contexto "macro" de suas trajetórias, e em que medida fatores externos e circunstanciais podem interferir na forma como esses grupos se mobilizam. As oportunidades ou restrições políticas são ferramentas analíticas para se avaliar as escolhas estratégicas dos movimentos sociais em sua luta política tendo em vista mudanças no contexto político institucional em que se encontram. Quando o contexto se altera, a tendência é que as estratégias desses grupos também mudem (TARROW, 2009). Assim, mudança para um regime político mais ou menos democrático do país, a eleição de determinado chefe do Poder Executivo ou de determinada composição do Poder Legislativo, ou alianças formadas na sociedade em certo momento são oportunidades ou restrições políticas que se abrem ou fecham para os movimentos sociais.

    De maneira geral, os estudos sobre movimentos sociais realizados no contexto da TPP ou não levavam em consideração os atributos do direito e sistema de justiça, ou os incluíam no campo das oportunidades políticas (VANHALA, 2011; HILSON, 2002). Nesse contexto, desenvolveu-se a noção de oportunidade jurídica (7), que busca justamente examinar aspectos específicos do Poder Judiciário que o diferenciam das outras instituições do sistema político e...

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