Ação afirmativa no âmbito do Ensino Superior: uma análise da constitucionalidade das políticas de cotas para ingresso em universidades

AutorCelso de Albuquerque Silva
CargoProfessor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio); Procurador Regional da República
Páginas42-67

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1. Introdução

A Constituição Brasileira que acaba de completar 20 anos de sua promulgação, representou um marco no desenvolvimento e planejamento de uma nova sociedade democrática, devendo ser compreendida contextualmente como um documento que tem por finalidade assegurar um modelo de democracia associativa. Nesse sentido deve ser vista como uma refundação dos princípios democráticos clássicos da democracia representativa do mercado, na parte em que reconhece como suficiente, que as pessoas são tratadas como iguais quando construímos o indivíduo como um sujeito de direitos, portador de direitos e deveres perante o Direito. Nesse modelo a verdadeira pessoa humana torna-se uma abstração, um ponto em que localizado um nexo de direitos e deveres, isso porque de uma forma ou de outra, toda democracia representativa constrói de certa maneira o “representado”, que passa a se tornar invisível enquanto ser de carne e osso que de fato é.

A democracia associativa, superando a díade indivíduo/comunidade, promove, sem desprezar as características individuais do ser humano, o reencontro do indivíduo com a sociedade na qual se insere e da qual foi arbitrariamente arrancado através da estratégia representativa de “sujeito de direito” para ser lançado ao mundo desconhecido e cheio de perigos daPage 43luta pela sobrevivência, onde cada um deve cuidar de si mesmo em luta perpétua. A democracia associativa, tal como a definimos aqui, assume a tarefa de substituir essa igualdade formal do “sujeito de direito”, por um sistema de distribuição de recursos e oportunidades baseado em um princípio substantivo de igualdade que, sem rejeitar qualitativamente as inegáveis vantagens da igualdade abstrata dos sujeitos de direito, a ela agrega quantitativamente uma concepção positiva de liberdade que trate as pessoas como indivíduos reais que possuem necessidades a serem obrigatoriamente atendidas. A concepção de igualdade democrática associativa incorpora a noção que liberdade não é apenas liberdade de “alguma coisa”, mas a liberdade de positivamente se realizar como pessoa humana e viver a vida que entende como boa.

É na encruzilhada da democracia representativa de mercado com a democracia associativa, que se travam os embates sobre a constitucionalidade das ações afirmativas no ensino superior. Com Sarmento1 entendemos que políticas de ações afirmativas são medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através de discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável e que sejam vítimas de discriminação e estigma social. Os críticos dessas políticas afirmam que elas violam a igualdade. Para eles não há diferença entre discriminar para prejudicar e discriminar para “beneficiar”, mesmo porque ao benefício de uns, corresponderia o prejuízo de outros. Argumentando em termos de consequências, agitam que de fato nem mesmo de benefícios se poderia falar, pois tais medidas mais agravam do que solucionam os problemas que pretendem enfrentar, gerando segregação onde não existe e agravando as discriminações porventura existentes, piorando, mais do que melhorando, a vida daqueles que intentam beneficiar. Em sede de educação superior, essas críticas são reforçadas com alegada violação ao princípio meritocrático acolhido em nossa Constituição para acesso ao ensino superior e afronta à competência legislativa da União, naquelas hipóteses em que a política de cotas é instituída por exclusivo ato normativo da Universidade. Os defensores de tais políticas a seu turno aduzem três argumentos básicos: reparação, justiça distributiva e diversidade2.

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O tema das ações afirmativas está na ordem do dia das pautas judiciais no Brasil. Atualmente, os Tribunais Regionais Federais da 1ª e 4ª Região já se pronunciaram pela sua constitucionalidade. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região entende pela sua inconstitucionalidade enquanto não existir lei em sentido formal autorizando tais políticas e o Tribunal Regional da 2ª Região ainda não tem posição definida. O Supremo Tribunal Federal deverá se pronunciar sobre o tema brevemente na ADI nº 3.197 proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino contra a lei nº 4.151/2003 do Estado do Rio de janeiro que instituiu o sistema de cotas na UERJ e UENF. Neste estudo busca-se demonstrar a constitucionalidade das ações afirmativas em ensino superior, fazendo uma correlação entre os argumentos da reparação e justiça distributiva com o princípio da isonomia e sua relação com o status quo e a idéia de mercado; e o argumento da diversidade com o princípio da autonomia universitária, indicando, quando adequado, os dispositivos constitucionais que sustentam essa linha de argumentação.

2. O Princípio da igualdade – evolução histórica de seu sentido e conteúdo

Historicamente, o princípio jurídico de que todos os cidadãos pertencentes à polis devem ser destinatários, por parte do Estado, de um tratamento de igual consideração e respeito apenas tendo em conta a sua dimensão moral enquanto pessoa humana, está nas sociedades ocidentais ligado ao desenvolvimento da teoria do Estado.

No Estado absolutista precursor do Estado Liberal dos séculos XVII e XVIII, as pessoas não eram concebidas como iguais. O quadro jurídico em que se inseriam decorria de sua inclusão em um determinado estamento social e não de sua natureza humana. É com a instauração do Estado Liberal de Direito que a igualdade de todos os homens perante a lei é afirmada, igualdade esta significando a abolição dos privilégios derivados da ordem social estruturada em castas.

A igualdade recém conquistada e simbolizada na generalidade e abstração dos textos legais inicia-se com uma leitura liberal extremamente restrita, realçando apenas um valor: a liberdade. A igualdade dos liberais que, posteriormente, se convencionou denominar de igualdade formal, limitava-se a afirmar e reafirmar que todos eram igualmente livres para que os indivíduos, no quadro jurídico em que identicamente inseridos ePage 45submetidos, pudessem desenvolver, sem interferência estatal, todo o seu potencial enquanto pessoa humana, ainda que a custa dos menos favorecidos pela natureza ou sociedade. É a igualdade laissez faire.

Nesse contexto histórico, não é de se admirar que a igualdade se referisse a um valor que, embora alardeado como universal, tenha beneficiado apenas uma pequena elite econômica. A igualdade liberal não se propunha a modificar a realidade de profunda assimetria social existente, nem a afastar a opressão dos mais fortes sobre os mais fracos, na medida em que “avalia positivamente tais desigualdades e considera uma sociedade tanto mais civilizada, quanto mais desigual, elevando, a critério fundamental para a distribuição das recompensas não a necessidade, mas a capacidade”3.

Com o advento da democracia e do Estado Social nos albores do século XIX e início do século XX, iniciou-se o processo de releitura do princípio da igualdade. A democracia propiciou o surgimento do mercado político4 no qual as classes sociais menos favorecidas economicamente aceitam trocar o seu voto por prestações e utilidades sociais até então inacessíveis, conduzindo o Estado a promover uma maior intervenção no mercado econômico, província até então considerada exclusiva da classe burguesa.5 A essa paulatina intervenção nas relações econômicas se desenvolveu uma maior preocupação do Estado com o bem estar de todos os seus cidadãos. Como consectário lógico, iniciou-se um processo lento, mas sempre crescente, de reconhecimento constitucional de novos direitos voltados para a população mais pobre, envolvendo uma série de prestações positivas a exigir uma atuação mais ativa dos Poderes Públicos visando a assegurar a fruição de direitos básicos mínimos relacionados com a dignidade da pessoa humana. Essa nova leitura do princípio da igualdade traz uma renovada visão de justiça igualitária. O critério definidor da igualdade passa a ser não mais a capacidade, mas sim a necessidade.

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Nessa nova concepção, o foco não é mais o indivíduo abstrato e racional idealizado pelos filósofos iluministas, mas a pessoa de carne e osso, que tem necessidades materiais que precisam ser atendidas, sem as quais não consegue nem mesmo exercitar suas liberdades fundamentais. Parte-se da premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações e políticas públicas, e que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos.6 É a igualdade do Estado Social que se convencionou chamar de igualdade material em contraposição a igualdade formal do Estado Liberal. Nesse primeiro momento, igualdade formal e igualdade material são apresentadas como virtudes antitéticas.

No intuito de apontar as diferenças entre o que seriam dois tipos de igualdade vários esforços foram feitos na fixação dos critérios distintivos. O primeiro critério afirma que a isonomia formal seria um conceito jurídico; uma coisa do direito, de aplicação indistinta e imparcial da lei, enquanto que a isonomia material seria um conceito da realidade; uma coisa da realidade, de aplicação concreta e parcial. Um segundo critério aponta para o destinatário da isonomia. A isonomia formal diria respeito ao aplicador da lei, que não poderia discriminar, garantindo a igualdade de todos perante a lei; enquanto que a isonomia material se destinaria ao legislador, no âmbito da criação da lei, que não poderia discriminar de forma irrazoável e, por último, distinção que mais aporta para a questão ora debatida nos...

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