Os direitos fundamentais à vida e autodeterminação frente ao problema do aborto: O enfoque constitucional de Ronald Dworkin.

AutorLuiz Henrique Urquhart Cademartori
CargoMestre em Instituições Jurídico-Políticas e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; tem pós-doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada
Páginas212-224

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Considerações iniciais

A questão, recorrentemente polêmica, sobre a interrupção voluntária da gravidez envolve, além de inúmeros casos e circunstâncias, enormes dificuldades quanto ao seu tratamento pelo Direito. As razões disto decorrem, não somente da complexidade de suas implicações como também da extrema relevância do valor intrínseco que tal problema encerra, qual seja, o da própria vida em toda a sua dimensão existencial.

Com respeito a um problema de dimensões e decorrências tão amplas como é o caso do aborto, o presente artigo não pretende tratar da questão de forma analítica, ou seja, tecendo considerações sobre cada uma das situações específicas onde se possam analisar os seus prós e contras. O que se objetiva é tratar da questão a partir de um aspecto que lhe é mais subjacente, qual seja, o do valor da vida e suas implicações moral, religiosa, política e constitucional em deste tema. Isto tudo poderá redundar na construção de parâmetros mais seguros, visando equacionar o papel do Estado e do Direito face ao problema do aborto e da religião.

Para tanto, o embasamento teórico a ser utilizado estará fundamentalmente apoiado nas reflexões de Ronald Dworkin a respeito do aborto e seu tratamento face às liberdades individuais. A escolha deste autor decorre, dentre outras razões, da sua peculiar forma de tratar do tema, com atualidade e acuidade suficientes como para construir um sofisticado posicionamento o qual, embora assuma um dos pólos da questão, mostra-se igualmente respeitoso com relação aos variados e antagônicos posicionamentos ideológicos e morais sobre o aborto.

Destaque-se, entretanto, que a análise aqui empreendida procederá a um recorte teórico da citada obra, com base em critérios próprios e tidos como os mais relevantes sobre as opiniões de Dworkin, sem se prender de forma linear a todo o conjunto de ponderações que o autor constrói ao longo de toda a obra.

1 Os argumentos em favor do aborto e seus aspectos críticos

Inicialmente, cabe considerar dois argumentos básicos que Dworkin esquematiza como parâmetros de posicionamentos contrários ao aborto: o primeiroPage 213deles afirma que o aborto é errado, como linha de princípio, pelo simples fato de estar violando o direito de alguém a não ser morto, tal como matar um adulto, igualmente é errado na medida em que viola-se um direito à vida.

Esta objeção ao aborto é chamada pelo autor de objeção derivativa pelo fato de que ela pressupõe direitos e interesses que todos os seres humanos têm, incluindo-se aqui os fetos. Este posicionamento leva, então, ao entendimento de que o governo deveria proibir ou, no mínimo, regulamentar os casos de aborto por ter uma responsabilidade que, além de dizer respeito à vida dos seus cidadãos, é derivativa com relação ao feto.

A segunda objeção radicaliza o seu posicionamento afirmando que a vida humana possui um valor intrínseco e inato, sendo sagrada em si mesma. Assim, a sacralidade da vida começaria quando a vida biológica se iniciasse, vale dizer, antes mesmo de que a criatura à qual esta vida é intrínseca possa ter movimentos, sensações, interesses ou direitos próprios.

Nessa linha de entendimento, o aborto seria errado por desconsiderar e insultar o valor intrínseco e sagrado de qualquer estágio ou forma de vida humana. Essa objeção é chamada de independente, precisamente por não depender de nenhum interesse ou direito em particular, nem sequer os pressupor.

Essas duas objeções podem ser problematizadas nos seguintes termos: começando-se com a segunda objeção, a dificuldade inicial em aceitá-la reside no próprio radicalismo do seu argumento, a tal ponto que levantamento estatístico mostrado pelo autor revela que, nos Estados Unidos, apenas 10% dos entrevistados em pesquisa Time/CNN realizada em agosto de 1992 disseram que o aborto deve ser ilegal em qualquer circunstância.

Com efeito, caso se considere o contexto brasileiro, tal argumento é ainda mais restritivo e politicamente conservador que a própria legislação penal sobre o tema (a qual é criticada em sua totalidade, como defasada, pela maioria dos juristas) vez que esta ainda permite casos de aborto em situações tais como risco de vida para a mãe ou gravidez que tenha sido fruto de estupro.

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Em linhas gerais, se toda vida humana, inclusive aquela de quem virá a tornarse um ser humano, é, incondicionalmente intocável, em uma linha de raciocínio igualmente extrema, institutos como o da legítima defesa acarretariam uma contradição lógica insolúvel na medida em que não posso tirar a vida de outrem para me defender, vez que ela é sagrada, mas ao não fazê-lo, acabo tirando a minha própria vida igualmente sagrada.

Por essas razões, resulta mais proveitosa a discussão a respeito da primeira objeção (derivativa), inclusive por ser ela a que, majoritariamente, é levada em consideração ao tratar do aborto e os direitos e interesses envolvidos na sua regulamentação, proibição ou permissão.

Adentrando, então, na discussão deste ponto de vista, o questionamento preliminar é do de saber se um feto tem direitos e interesses, principalmente o de não ser destruído a partir da sua concepção. Para Dworkin, esta idéia resulta extremamente problemática.

Em primeiro lugar, o autor ressalta que nem tudo o que pode ser destruído, tem interesses em contrário. Nesta linha de argumentações a ser desenvolvida, as concepções são tecidas de forma mais abrangente e, aparentemente, arbitrária, entretanto, Dworkin irá produzindo um jogo de aproximações, partindo de coisas e chegando aos seres humanos, visando com isto, melhor situar a idéia de interesses pela vida.

Para tanto, inicia seu argumento constatando que uma bela escultura poderia ser despedaçada, constituindo isto uma grave ofensa ao seu valor intrínseco, que grandes obras carregam, afetando o interesse (aqui sim) das pessoas que se comprazem em admirar ou estudar ditas obras, mas isto não significa que a obra em si mesma tivesse, em algum momento, interesses contrários à sua destruição.

Mas mesmo aquilo que é vivo ou se encontra em processo de transformação em algo mais amadurecido, também não terá interesses próprios, tal como um broto de cenoura colhido...

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