O direito constitucional à saúde:breve delineamento sobre as realidades brasileira e italiana

AutorJanaína Machado Sturza
CargoAdvogada, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Mestranda em Direito pela UNISC.
Páginas100-120

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Considerações Iniciais

O presente artigo teve como interesse principal a exploração acerca da trajetória histórica do Direito à Saúde no Brasil e na Itália, salientando pontos relevantes da contextualização social e política destes países, além da tentativa de traçar um delineamento do perfil deste direito a partir das atuais realidades de cada um dos dois países.

Assim, o Direito à Saúde no Brasil, como aponta a nossa Constituição Federal de 1988, é um direito de todos e um dever do Estado, calcado no art. 196 da Constituição e garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Através deste dispositivo legal, o termo saúde se constituiu como um direito reconhecido igualmente a todo o povo, além de ser um meio de preservação e de qualidade de vida, sendo este o bem máximo da humanidade.

Já na Itália, o Direito à Saúde, através da Constituição da República Italiana de 1948, se constituiu como direito fundamental do homem, sendo elevado ao status de um dos direitos de solidariedade inviolável, consagrado no art. 32 da Constituição. Por conseguinte, trata-se de um direito absoluto, com tutela erga omnes, ao qual corresponde o dever de promover e garantir o bem-estar de cada indivíduo, enquanto membro do Estado Social.

Desta forma, a saúde representa uma preocupação constante na vida de cada cidadão, enquanto elemento fundamental para as necessidades de segurança em vários aspectos do bem viver em comunidade. A complexidade dos aparatos necessários para dar uma resposta a tal preocupação é acrescida com a articulação dos Estados Modernos, muitas vezes de forma desviante em relação ao objetivo originário. A solução para o acesso igualitário ao Direito à Saúde, em parte, é atribuída a setores da política econômica e social de cada país, aliando a isto o esforço conjunto de toda a coletividade representada pela sociedade.

Hoje, na sociedade contemporânea, a saúde é indiscutivelmente um fundamental direito humano, além de ser também um importante investimento social.

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Na medida em que os governos têm o objetivo de melhorar as condições de saúde de todos os cidadãos, é necessário que invistam recursos em políticas públicas de saúde, capazes de garantirem programas efetivos para a sua promoção. Todavia, garantir o acesso igualitário a condições de vida saudável e satisfatória a cada ser humano constitui um princípio fundamental de justiça social e, portanto, exige também uma grande produtividade complexa por parte da sociedade e do Estado, sendo necessária a intensificação dos esforços para coordenar as intervenções econômicas, sociais e sanitárias através de uma ação integrada.

Desta forma, para o pleno desenvolvimento de cada pessoa, enquanto membro ativo de uma sociedade democrática e igualitária, é exigido não somente a garantia do acesso universal ao Direito à Saúde, mas também o seu efetivo cumprimento e satisfação, através da ativa intervenção do Estado, na intenção de remover obstáculos e de promover a saúde para todos os seus cidadãos, pois Direito à Saúde é direito à vida, sendo esta o bem máximo de cada ser humano.

1 Delineamento histórico do direito à saúde no Brasil

“[...]todo o Direito fundamenta-se em sua historicidade [..]” 1

Os aspectos históricos que fundamentam e perpassam a trajetória do direito na sociedade são de extrema relevância para que se possa compreender (ou não) o direito como um instrumento válido para a consolidação de um Estado Democrático de Direito. O direito à saúde não seria diferente e, portanto, necessário se faz o breve resgate de sua trajetória histórica.

A Constituição do Império, ou também denominada Constituição Política do Império do Brasil, de 25.3.1824, declarou, de início, que o Império do Brasil era a associação política de todos os cidadãos brasileiros, formando uma nação livre e independente, trazendo em seu art. 179 uma declaração de direitos individuais e garantias que, nos seus fundamentos, permaneceu nas constituições posteriores.2Esta Constituição foi uma Carta com algumas inovações no aspecto social, a qualPage 102claramente sinalizou para os Direitos Humanos do século XX. Entretanto, mesmo com estas características, o texto constitucional imperial não normatizou, regulamentou ou sequer colocou como princípio o direito à saúde.3

Já em 1891, mais precisamente na data de 24.02.1891, foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, a qual estabeleceu que a Nação Brasileira adotasse como forma de governo a República Federativa.4 Assim, na Constituição Republicana, caracterizada como fruto de um pacto liberal- oligárquico, a situação não tomou forma diferenciada e perseguiu o mesmo caminho do não reconhecimento e, portanto, da não inclusão do direito à saúde no texto constitucional.5

A segunda Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16.07.1934, não era tão bem estruturada como a primeira, de 1891. Ela trouxe conteúdo novo e manteve da anterior, porém, os princípios formais fundamentais. Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar.6

A influência dos políticos e doutrinadores estrangeiros se fez presente no tratamento dado à saúde na Constituição de 1934.7 Esta Constituição representou a inauguração do Estado Social brasileiro e trouxe consigo algumas tímidas preocupações sanitárias, descritas em seu Artigo 138:8

Art. 138. Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:

  1. adotar medidas legislativas e administrativas tendentesPage 103a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis;

  2. cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais;

A Constituição de 1934 foi revogada, promulgando-se, então, a Carta Constitucional de 10.11.1937. Em síntese, esta Constituição, também denominada de Constituição dos Estados Unidos do Brasil, teve como principais preocupações o fortalecimento do Poder Executivo; a atribuição ao Poder Executivo de uma intervenção mais direta e eficaz na elaboração das leis; o reconhecimento e garantia dos direitos de liberdade, de segurança e de propriedade do indivíduo, acentuando, porém, que devem ser exercidos nos limites do bem público.9

Todavia, a obrigação de planejar e legislar sobre saúde apareceu nesta Constituição de 1937 (artigo 16, XXVII) e também na Constituição de 1946 (artigo 5º, b), tendo como escopo o direito à assistência médica e sanitária dos trabalhadores, representados, respectivamente, pelos artigos 137, I e 157, XIV.10 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 18.9.1946, ao contrário das outras, não foi elaborada com base em um projeto preordenado. Ela voltou-se às fontes formais do passado e nasceu de costas para o futuro, mas mesmo desta forma não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante os vinte anos em que o regeu.11

Na data de 9.4.1964, expediu-se um Ato Institucional, o qual deveria manter a ordem constitucional vigorante. O fato de ser o Brasil um dos signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem não acarretou em grandes modificações na Constituição de 1964, a qual apenas retornou à situação da Carta de 1934. Assim, a saúde ainda era problema do executivo e de implementação de políticas públicas.12

Contudo, o texto da Constituição promulgada em 24.01.1967 não se caracterizou por grandes feitos na matéria do direito à saúde, uma vez que praticamente repetiuPage 104o dispositivo da Carta de 1964, citando, em seu artigo 8º, XIV, que era de competência da União estabelecer e executar planos nacionais de educação e saúde, bem como planos regionais de desenvolvimento.13 A Constituição de 1967 deu mais poderes à União e ao Presidente da República, reformulou o sistema tributário nacional e a discriminação de rendas, ampliando a técnica do federalismo cooperativo, reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais.14 Porém, mais uma vez o direito à saúde não alcançou lugar de destaque.

Em 1988, finalmente, aconteceu a promulgação da denominada Constituição Cidadã, a qual se caracterizou por apresentar um texto razoavelmente avançado, sendo, sem dúvida alguma, muito moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. É uma constituição que teve a ampla participação popular em sua elaboração, voltada para a plena realização da cidadania.15

O direito à saúde, em um ato de equilíbrio e justiça, foi deliberado que passaria a ser universal. Desta forma, somente após 40 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem é que o Brasil positivou o tema do Direito à Saúde,16 através do artigo 196 da Constituição Federal. Portanto, esta é a primeira vez na história constitucional brasileira que o direito à saúde faz parte do corpo da Carta Magna. Na Constituição de 1988, no que tange à atividade sanitária, se estabeleceu um novo patamar de relação entre o Estado e a sociedade do Brasil, descobrindo uma nova forma de reestruturação da realidade, diante do Estado Democrático de Direito.17

É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem.18 Neste sentido, Dallari19complementa dizendo:

P...

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