Ainda o Presidencialismo: um debate a partir do pensamento de Roberto Mangabeira Unger/And yet, Presidentialism: a debate with the ideas of Roberto Mangabeira Unger.

AutorBatelli, Vinícius
  1. Introdução

    O presente texto tem como objetivo polemizar aspectos específicos do pensamento do jurista e filósofo Roberto Mangabeira Unger, em especial, suas concepções a respeito do sistema de governo mais apropriado ao Brasil. Filósofo de profundo impacto nos debates sobre os problemas do tempo presente, Unger tem preocupação com a questão nacional, e dentro da sistemática de suas proposições para o Brasil, oferece diversas ideias de reformas para nosso sistema político. É de nosso interesse apresentar uma de suas proposições - a de reforma de nosso sistema de governo - e com ela dialogar criticamente.

    Roberto Mangabeira Unger foi um dos pioneiros dos Critical Legal Studies, corrente de pensamento fundada nos Estados Unidos da América, na década de 1970. Amalgamando "fenomenologia, historicismo social, realismo jurídico, marxismo frankfurtiano, estruturalismo francês e análise interdisciplinar" (1), os Critical Legal Studies tinham como adversários o positivismo jurídico, a racionalidade instrumental e o liberalismo (2). Procuraram demonstrar, a seu tempo, que o Direito é produto de lutas e concepções sociais historicizadas e datadas, e não um conjunto de institutos dados e perenes.

    Convencido da necessidade de retirar o estudo do Direito do fetiche logicista, Mangabeira Unger politiza a crítica do Direito de modo a afastá-la tanto do convencionalismo liberal quanto do fatalismo marxista. Nas palavras de Philippe Oliveira de Almeida:

    Direito é política--este é o axioma que fundamenta os Critical Legal Studies (e o trabalho de Unger). Iludimo-nos concebendo o Direito como técnica--estratégia de resolução de conflitos e estabilização de expectativas. Enganamos, ainda, encarando o direito como sapiência --jurisprudência, a prudência do Direito, a aplicação ciceroniana da phronesis aristotélica à experiência normativa desenvolvida em Roma. Técnica e sapiência, no Direito, obedecem a fins político-ideológicos previamente estipulados; ignorá-los, na aplicação das normas jurídicas, é mostrar-se conivente com o discurso hegemônico. (3) Desse modo, é tarefa do jurista compreender que "as estruturas dominantes não são naturais, superiores ou necessárias--as normas são artefatos humanos, e não parte da arquitetura do Universo" (4). Ora, se o liberalismo pode ser descrito como uma ditadura da falta de alternativas, no sentido de que naturaliza as formas sociais estabelecidas como necessárias e imutáveis, então o pensamento crítico deve entender as instituições político-jurídicas da Modernidade como legatárias desse modo de pensar.

    De fato, "do ponto de vista teórico-normativo, o liberalismo exerceu desde seu surgimento com Hobbes e sucessores a hegemonia do debate" (5) sobre o que constitui e o que deve constituir uma sociedade democrática. (6)

    Essa hegemonia se torna especialmente traiçoeira no tempo presente, marcado pela presença impregnante do pensamento neoliberal, cujos proponentes aceitam a tese geral de que "as sociedades contemporâneas convergem gradualmente para um conjunto inter-relacionado das melhores práticas e instituições disponíveis no mundo atual." (7) Essas instituições seriam encontradas, de maneira geral, nos modelos das democracias industriais ricas, modelos para os quais todos os países do globo convergiriam, cedo ou tarde, após o colapso do mundo do socialismo real (8).

    É assim que Unger propõe o experimentalismo democrático como contraposto ao fetichismo institucional (9): no lugar de tomar certos conceitos institucionais como abstratos, imóveis no tempo e no espaço, necessários a toda e qualquer sociedade de aspirações demo-liberais, seria preciso renovar o projeto democrático a partir de um exercício de imaginação institucional.

    O fetichismo institucional, ideia notadamente inimiga do avanço rebelde do projeto democrático, está respaldado numa visão evolucionista das instituições políticas e jurídicas, de modo que o acerto institucional de uma constituição, seja ela qual for, é medido pela semelhança do seu desenho institucional com os desenhos institucionais de sociedades "que se provaram capazes de conciliar prosperidade econômica e um cuidado satisfatório com liberdade política e segurança social" (10), mesmo que essas configurações não tenham aderência ao substrato sociocultural do país em que se deseja adotá-las.

    Nesse caso, a configuração política, jurídica e econômica dos países, em vez de um processo de construção coletiva e autônoma de um povo, se tornaria mero exercício de tentativa e erro, de mimetismo das instituições de países tidos como centrais no Ocidente.

    Em reação, devemos "ajudar a comunidade a ampliar o repertório de reformas para organizar os campos da vida social" (11), para além do "estoque limitado de soluções institucionais" (12) que a tese da convergência neoliberal nos legou.

  2. O Brasil Repensado

    A necessidade do experimentalismo democrático se dá no âmbito da prostração do pensamento de esquerda diante de duas perspectivas parceiras na desilusão política. A primeira é a conhecida perspectiva conservadora do reformismo pessimista, uma prática política que visa a atuação no interior de um sistema já estabelecido. Seu objetivo é "humanizar o inevitável" (13). A segunda perspectiva é a da expectativa de uma prática revolucionária completa, que substitua um sistema por outro, oniricamente alimentada pelo marxismo ortodoxo.

    Para retirar o pensamento progressista do seu desalento, Unger propõe o experimentalismo democrático no âmbito de uma ação política transformadora, isto é, uma perspectiva que "não é nem um reformismo passivo, nem a ideia de revolução baseada na substituição instantânea de um sistema por outro" (14).

    Para pensar alternativas efetivamente progressistas, é preciso também abandonar certas premissas deterministas que geralmente acompanham o enfoque estrutural das ciências sociais. Uma dessas premissas é a da indivisibilidade: a crença de que sistemas institucionais compõem conjuntos indivisíveis; na ausência de um de seus elementos, o sistema cai por completo. (15) Nesse caso, a política só pode abrir dois caminhos: a reforma conservadora fraca, de pequenos ajustes e humanização de um sistema inconteste, ou a completa revolução.

    Será assim que muitos pensadores progressistas, já não mais crentes na possibilidade da revolução "abandonam, com ela, as práticas de repetida e cumulativa reconstrução institucional" (16).

    Para a perspectiva proposta por Mangabeira Unger, será possível imaginar diversos modos de ação transformadora; a revolução passa a ser um caso-limite de possibilidade de transformação do sistema, não mais o único (17), porque as próprias instituições que sustentam o capitalismo são as mais variadas e se combinam de múltiplos modos. Unger salienta que a revolução é um "acontecimento de curso tão incerto (...) que temos sorte de não depender de uma para refazer nossos contextos." (18)

    A prática política transformadora pode ser, portanto, aquela que conta com reformas--isto é, com a mudança de uma parte de cada vez do sistema, passo-a-passo--sem abandonar a perspectiva futura de mudança radical. As instituições formadoras da sociedade, a despeito de estarem conectadas, não são indivisíveis e não estão fatalmente conectadas: podem ser reformadas parte por parte, na direção de um projeto radicalmente democrático (19).

    Ou, em claríssimo resumo:

    Dito de outra maneira: varia na história dos regimes institucionais e ideológica a distância entre dois tipos de atos. Há os atos corriqueiros que empreendemos dentro de arcabouço institucional e ideológico, que deixamos de questionar ou de reconstruir. E há os atos excepcionais e transformadores pelos quais mudamos, de tempo em tempo, provocados por conflitos e crises, partes do arcabouço. Quanto menor a distância entre essas duas classes de atos, quanto mais fácil a passagem da reprodução à transformação das estruturas, menor fica o risco de confundi-las com fenômenos da natureza. Maior fica nossa liberdade para participar de um mundo social sem nos render a ele. (20) Na esteira de sua proposta de ação transformadora, Roberto Mangabeira Unger colocou sua produção intelectual a serviço de um projeto democrático para o Brasil, um projeto que não mais se escore na humanização resignada das estruturas existentes, mas na vontade de inová-las.

    Publicou, assim, A Segunda Via: presente e futuro do Brasil, A Alternativa Transformadora: como democratizar o Brasil e, mais recentemente, Depois do Colonialismo Mental: repensar e reorganizar o Brasil. Em todos esses exercícios para pensar o país, Unger se vale de uma sistemática rejeição às falsas necessidades.

    Sua publicação mais recente sobre o Brasil, intitulada Depois do Colonialismo Mental, constitui um apanhado de escritos de Unger publicados entre 1998 e 2016, todos concebidos como uma interpretação do Brasil "a serviço de proposta para mudá-lo." (21) São textos de preocupação prática, com a ambição de transformar a sociedade brasileira. Para decifrar as estruturas do país, Mangabeira Unger propõe que também se compreendam as possibilidades de transformá-las. Em outras palavras, o exercício de reimaginar diferentes instituições e estruturas (sociais, jurídicas, econômicas, culturais e políticas) do país constituiria parte integrante do esforço de uma interpretação precisa do Brasil.

    Fiel ao combate que trava contra o pensamento social-democrata (pretensamente progressista, substancialmente conservador), Unger critica a hegemonia da ideia da Suécia tropical: seus partidários defendem que "não temos de buscar no Brasil grandes inovações na maneira de organizar o mercado e a democracia." (22) É a versão brasileira do reformismo fraco e humanizador de um sistema fundamentalmente injusto.

    Os partidários dessa ideia são em geral autodenominados "social-democratas" ou "social-liberais", defensores de que o país deve "aceitar e reproduzir variante do conjunto de acertos institucionais e das políticas públicas que está estabelecido nos estados livres e...

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