Algumas implicações institucionais da recepção do 'paradigma do bem-estar social' no âmbito da regulação econômica e da defesa da concorência

AutorPaulo C. Aragão e Luis Fernando Schuartz
Páginas148-163

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I - Introdução

O objetivo deste texto é examinar as condições de possibilidade - e os limites - de uma coriceptualização jurídica integrada das políticas de regulação de monopólios naturais e de concorrência. A colocação do objetivo nestes termos pretende sugerir a existência de candidatos mais ou menos naturais para servir como "paradigma" na referida empreitada conceituai, mas também, de restrições no universo das alternativas disponíveis. Indo direto ao ponto, o que se trata de analisar são as condições de realização, no plano institucional, de uma proposta de integração teórica no tratamento jurídico dos fenômenos da regulação econômica e da defesa da concorrência, cristalizada em torno do objetivo da maximização do bem-estar social.

Esta análise será crítica, em um primeiro momento, no sentido da identificação de um foco potencial de conflito entre a "lógica" que governa as atividades, normativamente orientadas, de aplicação de normas jurídicas de natureza "finalística" e a "lógica" que governa as atividades, cognitivamente orientadas, de definição de objetivos de política econômica sob a modalidade específica de normas jurídicas. Disto segue que a perspectiva crítica se constrói, inicialmente, sobre a base de um argumento de caráter geral, pois vale diante de toda tentativa de subordinar o trabalho sistematizador do jurista a imperativos funcionais, seja qual for o seu matiz. Neste sentido, o "paradigma do bem-estar" é apenas uma das possíveis formas particulares que pode assumir o problema anteriormente mencionado e a sua escolha tem a ver menos com razões propriamente teóricas ou de princípio do que com motivos práticos relacionados à relativa preeminencia na literatura especializada.

Por outro lado, e num segundo momento, pretende-se que a análise seja críti-

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ca em um sentido reflexivo, isto é, que ela alcance também a si mesma. Este aspecto será decisivo para uma diferenciação da abordagem que o presente texto propõe daquela que poderíamos qualificar de "normativismo ingênuo". Em poucas palavras, este consiste na recusa pura e simples da idéia de que a recepção em massa de argumentos de origem econômica é uma condição absolutamente necessária para a racionalização do discurso jurídico a respeito dos temas da regulação e da concorrência, recusa que se dá em nome de um pseudo-purismo metodológico que virou as costas para os reais problemas enfrentados pelo moderno Estado Democrático de Direito. Desta perspectiva, o status privilegiado concedido ao "paradigma do bem-estar" na estratégia de elaboração deste texto se explica pelo seu enorme potencial racionalizador e pela convicção de que a sua eventual "superação" deverá necessariamente assumir a forma de uma reintegração no âmbito de um novo paradigma que atenda, de maneira equilibrada, aos imperativos próprios a cada modalidade de discurso (no caso, os discursos jurídico, econômico e político-econômico).

II - A maximização do bem-estar social como critério de unidade das políticas de regulação de monopólios e de concorrência

O que se está chamando, neste contexto, de "paradigma do bem-estar", pode ser resumido na idéia de que política re-gulatória em sentido estrito e política da concorrência estão entre si relacionadas de um modo complementar, e que o ponto de vista que garante e, por assim dizer, "calibra" essa relação de complementaridade está dado pelo objetivo da maximização do bem-estar social entendido como eficiência econômica. De acordo com esta leitura, tanto a política de regulação de monopólios como a política de defesa da concorrência deveriam orientar-se, em última instância, no "valor" da máxima eficiência econômica - ainda que de perspectivas diferentes.1 Com efeito, se o objetivo da política concorrencial é - ou deveria ser - "promover a eficiência" por meio de um controle preventivo (estrutural) e repressivo (comportamental) de exercícios de poder de mercado por parte de agentes econômicos, o objetivo da política regulatória é - ou deveria ser - a "correção" daquelas "imperfeições" ou "falhas" de mercado (no sentido de impedirem que o sistema de mercado desempenhe suas funções alocad vas de modo ótimo) que justamente, por uma razão ou outra, não pode se dar via aplicação do direito da concorrência. Entre as mencionadas razões, as mais citadas são as seguintes: externalidades, incentivos para comportamentos oportunistas em razão de assimetrias de informação e, especialmente, a presença de poder de monopolio "estruturalmente" não-eliminável, seja sob a forma de monopólios "legais" (i.e., aqueles criados por meio de norma jurídica), seja sob a forma dos chamados monopólios naturais, que resultam da particular estrutura de custos da indústria em questão, é dizer, sempre que uma única empresa puder produzir a quantidade total de mercado a um custo inferior ao associado à produção dessa mesma quantidade por parte de duas ou mais empresas.

Monopólios naturais dão origem a um peculiar desafio para os defensores de uma concepção sistematicamente integrada das políticas de regulação e de concorrência nos moldes do "paradigma do bem-estar". De um lado, o estabelecimento de uma pluralidade de empresas em situação de concorrência em mercados com tais características é ineficiente pelos motivos acima expostos; de outro lado, o monopólio natural também é ineficiente, na medida em que - de acordo com a teoria microeconômica convencional - fixa seus preços em níveis superiores aos competitivos (i.e., acima dos

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respectivos custos marginais). É a produção de tal ineficiência pelo monopolio natural que, então, vai caracterizar o problema que justifica, como tentativa de solução, a atividade regulatória do Estado. O desafio está, sob tais condições, em como garantir que a "correção" pelo aparato estatal da ineficiência identificada no caso do monopolio natural não será levada a efeito ao custo de uma geração de nova ineficiência, a saber, aquela produzida pelo conjunto de medidas em que consiste a regulação do monopolio natural.

Em certo sentido, a preocupação com este tipo de ineficiência não é algo restrito à atividade do Estado em matéria de regulação econômica. Também a criação de órgãos e agências dotados de poder normativo e fiscalizador para a aplicação da legislação antitruste somente pode legitimar-se, do ponto de vista do "paradigma do bem-estar", a partir da suposição implícita de que os efeitos líquidos sobre o "bem-estar social" produzidos por tal aplicação não serão negativos, ou seja, que as atividades dos poderes públicos direcionadas à promoção da eficiência nos mercados não serão, elas mesmas, fontes de ineficiências (ou, mais precisamente, de ineficiências quantitativamente "maiores" que aquelas geradas pelo exercício de poder de mercado que se está buscando prevenir ou combater por meio dessas atividades).2

Teoricamente ao menos, a resposta a esse desafio parece ser trivial: as autoridades responsáveis pela implementação, via aplicação do direito, das políticas da concorrência e regulatória, devem ser eficientes no sentido da efetiva realização das correspondentes missões institucionais a um custo social inferior aos benefícios associados a essa realização e, especificamente, da não produção de ineficiências nos mercados nos quais se verifica a intervenção. Essa trivialidade, no entanto e como anteriormente indicado, é apenas aparente. Isso é fácil de ver já no plano mais superficial da diversidade das formas ou "métodos" de atuação estatal no domínio econômico tendo em vista o objetivo declarado do máximo social welfare.

Nas discussões sobre o assunto no campo da política antitruste, as controvérsias têm início, como não poderia deixar de ser, ainda no contexto da própria definição do que seja "bem-estar social": este é o genuíno contested concept em torno do qual se articulam as disputas em relação ao que deve ser, institucionalmente, considerado como antitrust goal. Neste particular, as opiniões se dividem entre o time dos que defendem um conceito de bem-estar ou eficiência econômica dissociado de preocupações de natureza distributiva, e o time dos que sustentam que não pode haver bem-estar sem que se impeçam transferências de renda de consumidores a produtores, viabilizadas pelo exercício de poder de mercado por parte dos últimos. Do lado da política regulatória, a situação é mais complexa, dada a coexistência igualitária - ao menos em princípio - de modalidades muito distintas de regulação de monopólios naturais, desde a transferência de propriedade ou controle para o poder público, passando pelas várias formas de controle de preços, a fixação de taxas de retorno e o controle de condutas e de estruturas de mercado.

Ao que indica a literatura, os pressupostos e as implicações relativos à opção por um ou outro conceito de bem-estar social (no jargão do direito concorrencial, por um antitrust goal),3 e os efeitos econômi-

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cos, em termos de perdas e ganhos de eficiencias, associados aos tradicionais mecanismos de regulação, parecem já ter sido suficientemente estudados de uma perspectiva geral.4 Não é e nem poderia ser intenção deste texto discuti-los em alguma profundidade, ou mesmo, propor uma descrição resumida - e minimamente informativa - dos pontos altos dos correspondentes debates. A limitação de espaço, a quantidade e a heterogeneidade dos argumentos envolvidos recomendam um posicionamento mais distanciado em relação a esse tema. No que segue, portanto, a atenção estará limitada às conseqüências e, sobretudo, aos problemas relacionados à transposição, pura e simples, do "modo de pensar" que é característico das discussões político-econômicas a respeito da "forma ótima" de regulação dos mercados, para o âmbito das...

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