Algumas questões sobre a apelação no processo civil norte-americano e brasileiro

AutorFlávio Mirza
CargoDoutor em Direito (UGF)
Páginas95-115

Doutor em Direito (UGF). Professor Adjunto de Direito Processual da UERJ (graduação, mestrado e doutorado). Professor Adjunto no Centro de Ciências Jurídicas da UCP. Advogado.

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1. Introdução

O presente estudo pretende, obviamente sem pretensão de esgotar o tema, descrever as principais características, com o respectivo elenco das regras processuais, da apelação no modelo norte-americano. Feito isso, será feito um cotejo, ainda que sumário, de tal sistema com o de nosso país.

O estudo de sistemas processuais de outros países, longe de ser inútil, ou, ainda, mero capricho acadêmico, permite compreender melhor nosso próprio sistema, estabelecendo comparações e buscando soluções para os problemas aqui existentes. 1 Page 96

É interessante perceber que o estudo do processo norte-americano desnuda uma face daquela sociedade que se verifica, também, em outras áreas: o pragmatismo.

Com efeito, o processo civil estadunidense busca sempre a solução da lide 2, em seu sentido mais amplo, ou seja, busca-se resolver in totum o problema, pacificando a sociedade. Com efeito, por meio de um procedimento que só estabiliza a demanda em fase adiantada do caminho processual e de uma verdadeira prevalência do fundo sobre a forma, busca-se resolver o litígio da forma mais ampla possível.

Não se está afirmando que inexistam regras, mas com o processo busca-se a integração de todos os que tenham interesse no deslinde da causa 3.

O estudo que se segue procura fornecer um panorama do recurso de apelação, fazendo, sempre que possível, comparações com o direito pátrio.

2. Apelação e regra do julgamento final

O Processo Civil vigente nas cortes federais norte-americanas, assim como o de algumas jurisdições estaduais, encerra, no que tange ao sistema recursal, e mais precisamente ao recurso de apelação, características diversas das apresentadas no modelo brasileiro.

Assim, no sistema recursal norte-americano impera a regra chamada de "final judgement rule", ou, em tradução livre, regra do julgamento final 4. Tal consiste na permissão de apelação a órgão jurisdicional de grau superior, apenas quando da prolação do Page 97 julgamento final no processo. Dessa forma, somente a decisão judicial que resolva o mérito, sendo, portanto, hábil à execução, será apelável 5. A intenção da regra é a de que a decisão apelável tenha resolvido todas as questões que estavam sujeitas à apreciação judicial 6.

Assim, as chamadas "interlocutory orders", ou em tradução livre, decisões interlocutórias, que não são aptas a resolver o litígio como um todo, prendendo-se, assim, a questões incidentes no curso do processo, não estão sujeitas à revisão imediata 7. Tais serão revistas somente no momento do julgamento da apelação interposta 8.

Cumpre reconhecer, portanto, que a regra do julgamento final diz respeito ao momento processual em que determinado pleito recursal será analisado, adiando o exame pela instância superior de decisões interlocutórias até o momento propício à interposição da apelação 9. Por óbvio, não se está afirmando que as decisões interlocutórias são inapeláveis, mas que, em princípio, não admitem apelação imediata após sua prolação.

Como comentado anteriormente, essa regra, orientadora da estrutura recursal das cortes federais e de algumas jurisdições estaduais norte-americanas, traduz-se em economia processual porque evita a movimentação de todo um expediente recursal a cada decisão sobre questão incidental proferida no curso do processo. Há que se lembrar que a possibilidade de recorrer importa concessão de prazo, e, seja no formato do sistema norteamericano, seja no brasileiro, requer elaboração de peça, reunião de documentos Page 98 comprobatórios e uma série de outras providências que só retardam o curso da resolução da controvérsia principal 10.

Outra razão a sustentar a escolha da "final judgment rule" está na existência de questões que poderiam ser alvo de solicitação de revisão à instância superior por alguma das partes, mas que, ao final do processo, restariam prejudicadas, tendo em vista a declaração de procedência dos pedidos, no caso da parte autora, ou, à improcedência deles, no caso da parte ré. A resignação de uma das partes com alguma decisão interlocutória que lhe tenha sido desfavorável em virtude de uma vitória no desfecho final foi capaz de economizar precioso tempo na resolução do conflito 11. Percebe-se, na conformidade do que foi dito anteriormente, forte influência do pragmatismo.

Motivação não menos importante à adoção da mencionada regra é a deferência maior ao ofício dos juízes de primeira instância, haja vista a impossibilidade de revisão imediata das decisões interlocutórias pela instância superior. Concede-se, portanto, maior autoridade às suas decisões 12. Cumpre mencionar que no Brasil também há entendimento no sentido de se conferir maior importância às decisões de primeira instância.

Demais disso, deve ser observado que a possibilidade de recorrer de cada decisão interlocutória proferida acaba servindo à postergação da conclusão do julgamento, ainda mais quando se admite a atribuição de efeito suspensivo ao remédio judicial interposto 13. Os objetivos últimos dessa norma são, por conseguinte, impedir os expedientes procrastinatórios, servindo à efetivação dos fins colimados no processo. Page 99

Ocorre que, mesmo reconhecendo todas essas vantagens, a aplicação da regra do julgamento final comporta o sacrifício de alguns outros interesses. Por essa razão, determinadas jurisdições ainda não se convenceram de sua eficiência 14. Argumenta-se que a possibilidade da apelação imediata das decisões interlocutórias evitaria um julgamento desnecessário, mormente quando a questão decidida versar sobre o prosseguimento do processo. Pode-se aduzir ainda, que haveria possibilidade de um julgamento final mais sofisticado (detalhado), ou seja, melhor instruído, em razão do esmiuçamento das questões incidentais mais controvertidas. Não se pode olvidar, ainda, que a revisão imediata e especificada de decisões interlocutórias alça os tribunais de grau superior à posição de órgãos direcionadores e uniformizadores da interpretação da lei - caminho em certa medida oposto àquele propugnado pela regra do julgamento final ao permitir maior deferência às decisões do juiz de primeiro grau.

Eis as justificativas expostas por Friedenthal, Kane e Miller:

"This is not because they do not desire judicial economy, but rather they have determined that allowing interlocutory appeals is more efficient. This is particularly true if the issue on which an appeal is sought is one that would be determinative so that allowing an immediate appeal may avoid an unnecessary trial. Allowing interlocutory review also arguably supports a better and more refined trial: by correcting the errors below as they occur, whatever judgment ultimately is reached may be less likely to be reversed thus avoiding a wasted trial. In addition to this difference of view regarding which approach is more efficient, those systems allowing a more liberal interlocutory review focus on the task of the appellate courts to provide guidance to the lower courts concerning the interpretation of the law" 15 Page 100

Diante do exposto, nota-se que há pontos fortes a favor da adoção da regra do julgamento final, mas também há ponderações relevantes levantadas em favor de sua inaplicabilidade 16.

Em verdade, não se pode ignorar que determinadas decisões interlocutórias podem vir a agravar muito a situação da parte envolvida trazendo graves prejuízos. E, forçá-la a esperar até a prolação de um julgamento final pode ser mais prejudicial ainda. Por outro lado, quanto mais rígidos os requisitos para interposição de apelação, mais celeridade e economia processual podem ser auferidos.

Na tentativa de mediar os valores envolvidos na adoção de um ou outro caminho, algumas exceções à regra do julgamento final foram firmadas na jurisprudência e outras foram incorporadas às normas positivadas de determinadas jurisdições 17. Há, inclusive, Estados que, apesar de se filiarem à regra do julgamento final, têm regras processuais quanto à apelação tão flexíveis que mais se assemelham àqueles Estados em que tal regra não vigora 18.

Resta ao advogado, dessa forma, estudar as normas e a jurisprudência do Estado onde vai litigar, averiguando quais as decisões que se enquadram no conceito de apeláveis conforme a regra do julgamento final e quais são as exceções reconhecidas naquele Estado. Ou se, pelo contrário, o Estado admite livremente apelações imediatas de decisões interlocutórias. Há que se ter em mente que, se permitida a apelação imediata de decisão interlocutória, a perda do prazo para impugná-la importará em preclusão, ou seja, nem mesmo quando da apelação da sentença final poderá ser levantada qualquer objeção àquela decisão 19. Page 101

Por outro lado, reconhecer o que seja uma decisão final, imediatamente apelável, também requer cautela, uma vez que o reconhecimento incorreto acarretará na inadmissibilidade da apelação 20, seja pela impropriedade da decisão submetida ao segundo grau, seja pela perda do prazo para interposição da apelação da sentença final, quando o advogado tenha sido inábil a distinguir que a sentença final tenha sido proferida 21.

Por oportuno, deve-se ressaltar a rigidez com que as cortes federais norteamericanas aplicam a regra do julgamento final. Se nas jurisdições estaduais não há uniformidade de conceitos e as exceções são as mais diversas possíveis, originando a já aludida flexibilidade da regra do julgamento final, nas cortes federais o tratamento é outro. Nesse caso, as...

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