Alienação da empresa na falência e sucessão tributária

AutorHumberto Lucena Pereira da Fonseca
Páginas87-95

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1. Introdução

Tramitou por dez anos na Câmara dos Deputados — de 1993 a 2003 —, o Proje-lo de Lei 4.376, de iniciativa do então Presidente da República. Aprovado naquela casa legislativa na forma do ultimo substitutivo apresentado pelo relator, tai projeto foi remetido ao Senado Federal para revisão, onde tramita como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 71, de 2003, e aguarda parecer da Comissão de Assuntos Económicos. A proposição tem por objetivo regular a falência e a recuperação de empresas, ab-rogando, se aprovado, o Decreto-lei 7.661, de 1945, atual Lei de Falências em vigor no Brasil.

Tive a oportunidade de colaborar com as discussões travadas no âmbito do Banco Centrai acerca da nova Lei de Falências, discussões essas que acabaram por concluir pela conveniência de alterações destinadas a corrigir distorções, propondo novos mecanismos, já experimentados em outros ordenamentos jurídicos, mais adequados à realidade do mercado e mais benéficos à economia como utn todo. Muitas das sugestões apresentadas pelo Banco Central foram implementadas no texto finalmente aprovado na Câmara dos Deputados.

A diretriz dos estudos e discussões foi a de aumentar a eficiência do processo de falência e de recuperação de empresas. Tomou-se como princípio norteador a ideia de que a legislação deve efetivãmente promover o soerguimento das empresas em dificuldades ou possibilitar a continuação da atividade produtiva pela preservação da empresa, distinta da figura de seus administradores, A eficiência que se busca deve direcionar-se a esse fim. Por outro lado, no caso de a recuperação mostrar-se inviável, um processo de falência eficiente deve promover a realização do ativo e o rateio do produto da forma mais célere possível, procurando-se maximizar o valor obtido para, assim, diminuir o risco de mercado, com evidentes benefícios económicos à sociedade, especialmente no que tange ao custo do crédito, à circulação de riquezas e ao estímulo ao investimento.

2. Alienação da empresa ou de suas unidades produtivas

Em conformidade com esses objeti-vos, a lei deve estabelecer ordem de preferência entre as possíveis formas de realização do ativo, privilegiando, como primeira opção, a alienação da empresa como um

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todo. A segunda opção na linha de preferência seria a alienação de filiais ou de unidades produtivas da empresa. Essa orientação foi uma das poucas unanimidades em todas as discussões visando aperfeiçoar a legislação falimentar e foi inserida no corpo do ari. 153 do PLC 71, de 2003, a ser examinado pelo Senado Federal.

A alienação dos bens em conjunto, como núcleos económicos complcios, deve ser levada a efeito sempre que possível, uma vez que o valor obtido nessa modalidade de venda supera o somatório dos valores de cada um dos bens vendidos separadamente para adquirentes diversos. Tal se dá porque a alienação do estabelecimento engloba intangíveis, como nome, ponto comercial, marcas, clientela, know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre outros, levados em conta pelo mercado para avaliar seu interesse e fixar o valor das ofertas. Esses intangíveis seguramente se perderiam numa venda em separado.

Além &a maximização do valor, decisiva para a proteção dos credores e para a redução do risco da atividade económica, outro grande benefício da alienação em conjunto dos bens da massa falida c a preservação da empresa. A venda cm separado, se tratada como regra na falência, causa a dissipação do ativo e retira da economia uma unidade produtiva, com conse-qiiências bem conhecidas: desemprego, diminuição da produção e da concorrência, redução de arrecadação, perda do valor dos intangíveis, retração da economia.

Há que se separar o conceito de empresa, como núcleo produtivo organizado, da figura do empresário, maior responsável pelos atos que a levam à ruína. Se os interesses deste não se identificam com os da comunidade, não se pode dizer o mesmo daquela. A alienação da empresa implica a substituição de seus administradores, e é vantajoso à sociedade brasileira o estímulo à iniciativa económica, deferindo-se a outros a oportunidade de, organizando mais eficientemente o capital c o trabalho, ter sucesso onde outros falharam.

Pelos demonstrados benefícios da alienação da empresa ou de suas unidades produtivas, o Estado deve, por meio da lei, estimulá-la, tomando a preservação da empresa como princípio de política económica.

Entretanto, em que pese a vigente Lei de Falências, já abrirem seu art. 116 a possibilidade de alienação da empresa como um todo, tal opção não tem sido utilizada na liquidação dos bens das empresas falidas, talvez por não estar suficientemente explicitada na lei, mas, também — e, a nosso ver, principalmente — em virtude, dos riscos a que os potenciais adquirentes entendem estar submetidos pela interpretação da legislação em vigor.

3. O problema da sucessão tributária

Identificou-se, na prática do processo falimentar, possível distorção extremamente nociva tanto à preservação da empresa quanto à maximização do valor obtido com a realização de ativos Trata-se da sucessão de obrigações, especialmente as de natureza tributária, na alienação dos estabelecimentos comerciais da sociedade falida.

Na verdade, a sucessão tributária traz mais detrimentos que benefícios à Fazenda Pública. Ao estabelecer a oferta pela empresa, os interessados, normalmente os próprios concorrentes da empresa à venda, evidentemente levam em consideração todos os fatores que possam diminuir o valor do negócio. Se a sociedade oferecida é devedora de obrigações tributárias, não pode haver dúvidas de que o mercado não negligenciará essa informação e o valor oferecido naturalmente sofrerá a redução correspondente às obrigações transferidas ao arrematante. Assim, no que tange ao volume das garantias do Fisco, a sucessão não traz vantagens aos cofres públicos.

Agrava-se a situação se se considerar que a sucessão tributária envolve não somente os tributos definitivamente constituídos, que podem ser averiguados pelos eventuais interessados, mas também os não lançados ou não definitivamente constituídos.

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e mesmo aqueles decorrentes de fatos jurí-genos de que a Receita Federal sequer teve conhecimento. Nessa situação, a regra da sub-rogação pessoal do adquirente impossibilita uma análise adequada do risco envolvido no negócio e, assim, diminui sobremaneira o interesse do mercado na empresa a ser vendida, a ponto de tornar inviável sua alienação, seja em razão da falta de interessados, seja pelo baixo valor oferecido em face do risco não calcuiávcl c, portanto, superestimado pelos eventuais interessados.

Para ilustrar a questão, consideremos três cenários: no primeiro, o passivo tributário da falida é maior que o valor de avaliação da empresa como um todo, hipótese nada íncomum no Brasil. Nesse caso, a prevalecer a sucessão tributária, a venda da empresa não poderia ser implementada, já que não é razoável esperar que alguém se interesse por continuar o empreendimento sabendo que estaria assumindo obrigações que superam o valor de mercado da unidade produtiva adquirida. Os bens terminariam por ser vendidos separadamente, com perda do valor dos intangíveis, e a empresa desapareceria, deixando um passivo tributário a descoberto muito maior. Os cofres públicos seriam prejudicados diretameme pela diminuição do valor apurado com a venda e indiretamentecom a diminuição da arrecadação em...

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