A amplitude axiologica da categoria trabalho: contra o trabalho (estranhado) e pelo trabalho (substancialmente livre)/The axiological amplitude of labour: against the (estranged) labour and for the (substantially free) labour.

Autorde Mendonça Coelho, Bruna da Penha
  1. Introdução

    Não raro são levantadas propostas, mesmo dentro dos estudos críticos e que se pretendem materialistas, de que a superação da barbárie capitalista demanda que abandonemos a categoria trabalho enquanto chave de compreensão sociológica da realidade social. Entre os argumentos comumente apresentados, repousa, de um lado, a crença de tipo habermasiana em uma suposta perda da centralidade social do trabalho no chamado capitalismo tardio (1); de outro, a crença de que o conceito de trabalho se resume ao que conhecemos como tal sob o modo de produção capitalista (o trabalho estranhado).

    Quanto à primeira crença, parece-nos que as amplas evidências empíricas dão conta de que não se verifica uma retração do trabalho e da figura dos trabalhadores na sociedade contemporânea - muito pelo contrário. (2) Além dos dados empíricos que indicam o crescimento da classe trabalhadora em todo o mundo, encontram-se subsistentes fundamentos teóricos no sentido da intensificação do trabalho pela complexificação tecnológica (DAL ROSSO, 2008), da centralidade axiológica do trabalho (MARX, 2008) e das íntimas relações entre capital financeiro e capital produtivo (FONTES, 2010, pp. 22/3; MARX, 1985/6).

    Quanto à segunda, parece-nos que desconsidera todas as bases valorativas do que se constitui, historicamente, enquanto trabalho fundador de sociabilidade humana. Ignora que o que caracteriza o capitalismo é a conversão da força de trabalho em mercadoria e a extração de valor a partir de sua usurpação, e não uma espécie de invenção social da categoria trabalho em si (que é histórica e axiologicamente anterior ao capital - e, por isso mesmo, central para o processo revolucionário de superação deste modo de produção). Compreender a complexidade dessa dinâmica requer, portanto, que se recobre a amplitude valorativa do próprio conceito de trabalho. Não é outro o objetivo central deste artigo.

    Para tanto, propõe-se o cotejo entre a amplitude deste conceito e a retomada da gênese do trabalho sujeitado ao interesse do capital, a fim de perquirir as particularidades sociológicas deste modo de produção (que, como particularidades que são, podem ser historicamente modificadas). À luz do materialismo histórico marxista (MARX & ENGELS, 2007), procura-se, a partir da introdução de conceitos essenciais, entender o processo que culmina na predominância da atual concepção do trabalho calcado na essencialidade da subordinação e do estranhamento. Afinal, é impossível analisar a contemporaneidade sem dimensioná-la na progressão dialética do homem e da sociedade. As bases reais e materiais de existência (e de seus conflitos) não são dadas, nem estáticas, mas construídas e alteradas historicamente pelos seres sociais nos processos relacionais.

    Ressalte-se que não se trata de uma retrospectiva histórica linear. O que se persegue é uma exploração de conceitos ontológicos ligados ao fenômeno laboral sempre entendido no devir temporal. Longe de um historicismo narrativo, o processo histórico será o suporte de aplicação e materialidade dos fundamentos.

    Considerado como entidade na historicidade (assim como tudo), pensar na substancialidade do trabalho preconiza o retorno a suas raízes. As contradições em embate no duelo social ao longo da história imprimem em cada nova categoria a marca desse passado dual. Dessa forma, olhar para o passado é ao mesmo tempo enxergar fragmentos elementares do presente. Nas palavras de György Lukács: "ao contrário: a continuidade na persistência é, enquanto princípio de ser dos complexos em movimento, indício de tendências ontológicas para a historicidade como princípio do próprio ser." (LUKÁCS, 2012, p. 79)

    É no conceito da suprassunção hegeliana (Aufhebun) que tal paradigma se funda. Para além da dureza da dialética clássica, Hegel propõe enxergar o devir histórico desprendido de suas manifestações imediatistas. Os fenômenos devem ser compreendidos em sua dimensão na totalidade; gestados nos conflitos, em negações que de forma alguma se apagam. Na metáfora explicativa do filósofo:

    O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. E essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo (HEGEL, 2014, p. 22). Entretanto, o marxismo inverte a dialética hegeliana do campo idealista em que uma razão universal determinaria a realidade mundana. Marx retira as categorias de Ideia ou Espírito como condutores dessa abstração e propõe uma dialética materialista, calcada nas observações e representações da realidade. Esse movimento do vir-a-ser hegeliano é valorizado por Marx no sentido de conferir à dialética um papel mais dinâmico e complexo, atuando como motor da história. Apesar de destacar a importância do devir suprassuntivo, esse deslocamento do foco de aplicabilidade feito pelo materialismo histórico é metodologicamente essencial para compreender suas formulações ontológicas. É a partir da metodologia basilar do materialismo histórico dialético, portanto, que se propõe aqui uma análise crítica acerca da amplitude valorativa da categoria trabalho, a fim de compreender sua relevância teórica e prática.

    Tendo em vista esse objetivo, o artigo começa por perquirir o conceito ontológico de trabalho e suas relações com a noção de atividade vital consciente e com a fundação da sociabilidade humana. Na sequência, investiga as circunstâncias histórico-sociais que caracterizam o trabalho sob o modo de produção capitalista, com especial atenção para a configuração da força de trabalho como mercadoria e para o processo de estranhamento do trabalho humano. Por fim, empreende reflexões sobre a fundamentalidade de não se abrir mão da reivindicação por um conteúdo social emancipatório para o trabalho humano.

  2. Trabalho, atividade vital consciente e ser social.

    Percorrer a história do trabalho é necessariamente defrontar-se com a formação do homem como espécie animal social. No pensamento marxista, a potência e realização da atividade de trabalho criativo humano é marco inicial ontológico na compreensão de sua existência. Todavia, esse humano que trabalha não brotou espontaneamente. Na análise desse percurso temporal de desenvolvimento, propõe-se a diferenciação das formas do ser em: ser inorgânico, ser orgânico e ser social. A capacidade reprodutiva é o marco diferenciador entre o inorgânico e o orgânico.

    O ser orgânico, relativamente mais complexo, finalisticamente intenta reproduzir a si. A intenção de mantença genética, perpetuação contrasta com o tornarse outro observado nos seres inorgânicos. Nessa escalada, como ressaltado na leitura de Lukács (2012), a transição entre o ser orgânico e o ser social se dá pela atividade criativa essencialmente humana.

    Tal como a reprodução do mesmo se constitui em momento predominante do salto ontológico que deu origem à vida, a reprodução do novo, através da transformação conscientemente orientada do real, se constitui no momento predominante do salto que marca a gênese do ser social. (LESSA, 2015, p. 20) A construção desse trabalhar envolve precipuamente o processo consciente de instrumentalizar/mediar a relação do homem com o ambiente natural. Essa tomada de consciência da potencialidade inovadora humana exerce uma dupla transformação: no âmbito interno e externo, configurando um salto ontológico. A possibilidade de idealização e execução configura a ruptura com as limitações do ser orgânico que apenas intuitivamente copia.

    Chega-se, portanto, ao conceito axiológico basilar de trabalho, que pode ser extraído, primeira e fundamentalmente, dos Manuscritos Económico-Filosóficos de Marx: trabalho é a atividade vital consciente com predeterminação de fins - e que caracteriza o homem enquanto tal. "O homem [...] tem atividade vital consciente. [...] A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. [...] Eis por que a sua atividade é atividade livre" (MARX, 2008, p. 84).

    É justamente a amplitude valorativa do conceito que nos permite entender a particularidade histórica do estranhamento do trabalho operado pelo modo de produção capitalista, que será abordado de forma mais detida no próximo item deste artigo. Reduzir o conceito de trabalho à forma peculiar que assume no capitalismo, sem compreender sua dimensão primeira e central enquanto atividade vital consciente, retrai a potencialidade da crítica ao estranhamento do trabalho e coloca o debate em plano superficial.

    Se trabalho é toda atividade vital consciente com determinação prévia de fins (sendo, portanto, o que caracteriza o ser social como tal), não é difícil perceber sua amplitude e, consequentemente, sua centralidade axiológica na compreensão das relações sociais. Aos que argumentam que esta conceituação seria inútil justamente por sua extensão, responde-se que o objetivo de um conceito (delimitar um fenómeno social no mundo) não deve ser lido em sentido reducionista.

    Delimitar um fenómeno não significa colocá-lo em uma amarra teórica ou confundi-lo com representações individualizáveis, mas antes caracterizar as especificidades sociais que podem ser associadas ao conceito. A consciência e a consequente capacidade de estabelecer previamente as finalidades da atividade vital a ser empreendida delimitam, portanto, o conteúdo social daquilo que se pode caracterizar como trabalho verdadeiramente livre. Cumpre-se, portanto, a função que se espera de um conceito.

    Subjetivamente, o trabalho proporciona ao ser social desenvolvimento de suas capacidades, experimentação, acúmulo de conhecimento. No trabalho, o homem confirma o seu ser e seu saber. Essa jornada de...

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