Análise das Recomendações da OCDE/G20

AutorGustavo Fossati/Daniel Giotti de Paula
Páginas20-84
TRIBUTAÇÃO DA ECONOMIA DIGITAL NA ESFERA INTERNACIONAL | VOLUME 420
O Direito Tributário foi forjado até o final do século XX em torno de determi-
nadas materialidades econômicas, as quais não necessariamente refletem hoje
as materialidades presentes na economia digital.
O que se convencionou chamar pela doutrina de fato gerador, afirmando que o
tributo incide sobre alguma materialidade econômica, em geral denota um conteúdo
físico sobre o qual incide o tributo. Nesse sentido, propriedade urbana, proprieda-
de rural, propriedade de veículo automotor, mercadoria e produto industrializado
são expressões ligadas a fatos geradores sobre realidades econômicas materiais.
É claro que renda não é algo material, muito menos serviço, mas são obje-
tos culturais cuja demarcação conceitual era mais trivial em um mundo menos
complexo, sem a fluidez característica do mundo contemporâneo e, por isso,
antes identificáveis por conceitos que exprimiam juridicamente realidades eco-
nômicas corriqueiras, assimiláveis de pronto socialmente.
Mesmo objetos culturais como renda, receita e faturamento tinham antes
uma expressão contábil que, servindo de base ao Direito Tributário de um mun-
do sem grandes e disruptivas transformações, permitia algum grau de certeza
sobre quais materialidades econômicas seriam tributáveis, por isso a assimila-
ção social se dava com maior facilidade.
O mundo mudou, a economia se dinamizou, e o grau de certeza sobre as
realidades econômicas não mais se mantém, com reflexos no Direito. Tomem-se
como exemplos os serviços. Estes, atualmente, denotam um conceito jurídico-tri-
butário discutível, tanto nos processos judiciais submetidos à apreciação dos
tribunais, como o Supremo Tribunal Federal, quanto legislativamente nas ten-
tativas de se fixar uma compreensão prévia do alcance dos sentidos da palavra
“serviços” para os tributos novos estabelecidos nas reformas tributárias brasi-
leiras constitucionais ou infraconstitucionais.
Antigamente, parcela considerável da doutrina – o que influenciou a ju-
risprudência do STF – associava-o à obrigação de fazer, valendo-se de um dos
conceitos tradicionais de serviços no Direito Privado. Registre-se que, no caso
brasileiro, como pontua Gustavo Fossati, a questão regulatória da economia di-
gital já é antiga, pois o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a divisão da
tributação sobre o consumo entre estados (mercadorias) e municípios (serviços),
teve que discutir a tributação sobre software customizado, sob encomenda, e
software de prateleira, vendido no varejo, no já distante ano de 1998.29
29 FOSSATI, Gustavo. Constituição tributária comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista dos
Tribunais, 2021. p. 304ss.
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Voltou a discussão com a ADI no 5.659, que trata da tributação de softwa-
res, em suas várias qualidades e modalidades, na forma do voto prevalecente
do ministro Dias Toffoli. Definiu-se que a elaboração de um software, por en-
comenda ou customizado, disponibilizado via download ou via computação em
nuvem, é serviço que resulta de esforço humano e atrai o ISS.30
Esse é o atual estado da arte do Direito Tributário contemporâneo, sobretudo
do brasileiro, que lida, essencialmente, com conceitos, regras constitucionais de
competência tributária e uma tributação sobre o consumo repartida entre mais
de um ente federativo e realizada por meio de mais de um tributo.
Verdade seja dita que, como bem percebeu Alfredo Augusto Becker, ainda
em 1963, os tributos incidem sobre renda e capital, “realidades econômicas es-
sencialmente mutáveis, no tempo e no espaço, em quantidade e em qualidade,
tanto de indivíduo para indivíduo quanto em relação a um único indivíduo”.
31
Se
considerarmos a percepção de Klaus Tipke, todos os impostos se manifestam,
independentemente da denominação e do objeto imponível, sobre a renda.32 A
tributação atua, na essência, sobre um objeto comum, presente em praticamen-
te todas as manifestações de riqueza passíveis de serem exploradas: a renda.
Na prática, o fenômeno da incidência tributária ocorre, na maioria das vezes,
sobre a renda, mas em três momentos distintos: (i) no auferimento da renda,
(ii) no acúmulo da renda (patrimônio) e (iii) no dispêndio da renda (consumo).33
Lidar com a volatilidade no Direito Tributário não é, assim, novidade, mas
algo que se intensificou pelas mudanças políticas e econômicas das últimas dé-
cadas. O descompasso entre a doutrina dita “tradicional” do Direito Tributário
e da Economia como ela é atualmente fica evidenciada quando se percebe que
a transformação da última é tal que se fala em “servicização da economia”,34
expressão tomada de empréstimo da literatura econômica e da engenharia de
30 BRASIL. STF. Pleno, ADI no 5.659, Rel. Min. Dias Toffoli, j; 29.10.2020.
31 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5. ed. São Paulo: Lejus, 1998.
p. 527.
32 TIPKE, Klaus. Moral tributaria del Estado y de los contribuyentes. Tradução, apres. e notas por
Juan José Rubio Guerrero. Madrid: Marcial Pons, 2002. p. 32.
33 Das heißt aber im Ergebnis: Gleichmäßigkeit der Besteuerung bedeutet gleichmäßigen
Steuerzugriff auf das erzielte Einkommen, das verbrauchte Einkommen und das Vermögen”.
TIPKE, Klaus. Besteuerungsmoral und Steuermoral. In: Nordrhein-Westfälischen Akademie der
Wissenschaften. 422. Sitzung am 20. Oktober 1999 in Düsseldorf. Wiesbaden: Westdeutscher
Verlag GmbH, 2000. p. 34.
34 Os termos servitização e servificação são encontrados também denotando o mesmo fenômeno.
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produção, para tratar do fenômeno ambivalente da tendência de integração de
serviços a produtos e dos processos de transformação de produtos em serviços.
35
A regulação tributária36 até então deu conta de uma economia não volátil
e baseada na produção, sobretudo, de bens tangíveis e de serviços facilmente
identificados, por meio de conceitos mais determinados ou com amplo grau de
determinabilidade no núcleo de competências tributárias que atendiam a um
mundo mais estável e mais material.
A ênfase em competências tributárias denota como o problema é maior para
os poucos países, como o Brasil, que constitucionalizaram a matéria. No entan-
to, as questões relativas a quem tributar, tocando os aspectos pessoal, espacial
e temporal do tributo, afetam qualquer sistema jurídico-tributário no âmbito das
operações transfronteiriças com intangíveis, independentemente de qual seja o
tributo sobre o consumo eleito.
Dos anos 1980 em diante, o centro das atividades econômicas se deslocou
da manufatura para os serviços e intangíveis, aumentando a mobilidade das mul-
tinacionais, o que, ao mesmo tempo que aumentou a concorrência fiscal entre
35 NÚCLEO DE ENGENHARIA ORGANIZACIONAL (NEO-UFRGS). A servitização: um novo mo-
delo de negócio para as empresas. Disponível em: https://www.ufrgs.br/neo/servitizacao/
servitizacao-um-novo-modelo-de-negocio-para-as-empresas/. Acesso em: 13 maio 2021.
CROZET, Matthieu; MILET, Emmanuel. Should everybody be in services? The effect of
servitization on manufacturing firm performance. CEPII Working Paper, 2015. Disponível
em: http://www.cepii.fr/pdf_pub/wp/2015/wp2015-19.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.
36 Julia Black faz menção à existência de percepções variadas da literatura sobre o que se de-
nomina de atividade regulatória. E isto, conforme a autora, em virtude do uso indiscriminado
pelos autores dos elementos tidos como centrais para a construção do conceito de regulação.
Observando-se tal perspectiva com relação à tributação, verifica-se que, por outro lado, o con-
ceito de regulação tributária não figura nos debates atinentes à teoria da regulação em nível
nacional e internacional. A respectiva aplicação é feita de modo usual como assemelhada à
produção normativo-tributária. Contudo, considerando-se que a referida produção de normas
tributárias implica custos sobre a Economia, entende-se, neste trabalho, que a regulação tribu-
tária também pode corresponder aos efeitos de direcionamento do mercado pelo ordenamento
jurídico-tributário dos distintos países. Ver: BLACK, Julia. Decentering regulation: understan-
ding the role of regulation and self-regulation in a ‘post-regulatory’ world. The London School of
Economics and Political Science, v. 54, n. 1, 2001. Disponível em: https://www.researchgate.net/
publication/30527050_Decentring_Regulation_Understanding_the_Role_of_Regulation_and_Self-
Regulation_in_a_'Post-Regulatory'_World. Acesso em: 13 jul. 2021. PAYAO, Jordana; ROSSIGNOL,
Marisa. Desafios da regulação tributária em tempos de tecnologias disruptivas. Novos Estudos
Jurídicos, v. 24, n. 2, 2019. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/arti-
cle/view/14962/8543. Acesso em: 13 jul. 2021. MCCLASKEY, Layla S. A regulação tributária
da economia digital: uma análise à luz do caso da tributação do serviço de transporte por apli-
cativo. Dissertação (Mestrado em Direito da Regulação). Fundação Getúlio Vargas – Direito Rio,
2021. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30647. Acesso em:
13 jul. 2021.

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