Análise do art. 124, 5º, II, da Lei Das S/A à luz da teoria da regulação

AutorJulio Ramalho Dubeux e Rodrigo Oliveira Botelho Corrêa
Páginas119-125

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Introdução

O presente trabalho objetiva analisar o art. 124, § 5º, II, da Lei 6.404/1976. Trata-se de dispositivo recentemente incluído na Lei das S/A pela Lei 10.303/2001 e que constitui instrumento atualíssimo da regulação estatal sobre o mercado de capitais.

Ver-se-á adiante que o dispositivo em foco atribui à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a competência para manifestar-se sobre a legalidade das deliberações propostas a assembléia geral extraordinária de companhias abertas, isto é, companhias que têm valores mobiliários admitidos à negociação no mercado de balcão ou nas bolsas de valores.

Suscitaram o tema razões teóricas e práticas.

De um lado, a crescente e formidável discussão na Academia acerca das considerações sobre as formas de intervenção do Estado na economia, suas características, seus objetivos. Referimo-nos especificamente àquilo que alguns autores têm chamado hoje de Direito Regulatório.1

De outro lado, foi desafiador o fato de o renomado comercialista Modesto Car-valhosa ter sustentado, em parecer anexado a demanda2 recentemente ajuizada contra a Comissão de Valores Mobiliários, que a competência prevista no art. 124, § 5º, II, da Lei 6.404/1976 autoriza a CVM apenas a analisar a legalidade formal das propostas sujeitas a deliberação assemblear de companhia aberta.

Nos próximos itens, portanto, tentar-se-á demonstrar que o art. 124, § 5º, II, da Lei 6.404/1976 tem amplitude muito maior, cabendo à CVM, no exercício dessa competência, analisar a legalidade material das propostas sujeitas a assembléia geral extraordinária de companhias abertas, entendimento esse que decorre essencialmente da leitura constitucional que deve ser atribuída ao dispositivo.

Regulação econômica

O sentido e o alcance do art. 124, § 5-, II, da Lei 6.404/1976 dependem necessaria-

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mente da análise da competência administrativa da CVM, no contexto constitucional em que a referida entidade reguladora está inserido. Faz-se de rigor definir, portanto, o alcance da competência constitucional e legal da autarquia, no que tange à regulação do mercado de capitais.

A intervenção do Estado na economia variou muito ao longo do tempo. Luís Roberto Barroso,3 com a clareza que lhe é peculiar, distingue o histórico da atuação estatal em três fases: pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. A classificação é útil ao presente trabalho, e dela nos valeremos, porque da classificação se denotará o contexto histórico em que se apresenta a regulação a cargo da CVM.

A pré-modernidade é a fase do Estado Liberal, caracterizado por funções reduzidas, confinadas à segurança, justiça e serviços essenciais. É o Estado do século XIX e início do século XX. A intervenção do Estado Liberal na economia também era mínima, embora não se possa afirmar que fosse inexistente.4 As políticas governamentais eram utilizadas em prol dos interesses burgueses. Daí a grande preocupação com políticas protecionistas do comércio e da indústria.

A modernidade é a fase do Estado Social, também chamado de Estado do Bem-Estar (welfare statè), no qual o Estado assume diretamente alguns papéis econômicos, sendo de se destacar sua atuação como agente econômico condutor do desenvolvimento (atuação marcada principalmente pela criação e funcionamento de empresas estatais). E a época também em que se afirmam os direitos sociais e econômicos. Tem início na segunda década do século XX (Constituição de 1917 do México e Constituição de 1919 de Weimar) e vai até o último quarto do século XX.

A pós-modernidade, por sua vez, corresponde ao último e mais recente período histórico da atuação estatal, o qual, independentemente de posições político-ideológicas, verifica-se na remodelação do Estado, sobretudo no que diz respeito à sua intervenção na economia. No mais das vezes, o Estado deixa de ser empresário, e passa a ser agente regulador da atividade econômica.

De notar que "a redução expressiva das estruturas públicas de intervenção direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa ser identificado como o de Estado mínimo".5 Pelo contrário, apenas se deslocou a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização das atividades econômicas. Ou, nas palavras do próprio Diogo de Figueiredo,6 "o papel do Estado muda: de agente monopolista, concorrente ou regulamentados torna-se um agente regulador e fomentador. Não se trata de um movimento para chegar a um Estado mínimo, como se poderia pensar, mas para torná-lo um Estado melhor".

E nesse contexto que surgem, com enorme importância, as diversas entidades reguladoras da economia. Estruturadas em

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modelo que lhes garante independência perante o poder central e especializadas quanto ao objeto de sua regulação, a essas novas entidades se atribuiu a tarefa de enfrentar os desafios cada vez maiores de sociedades complexas, cuja eficiência depende de regulação dotada de independência política, celeridade, flexibilidade, neutralidade técnica e participação dos administrados.

Trata-se da tentativa de proporcionar o "máximo de eficiência na solução de problemas, aliando, na dosagem necessária para cada hipótese, as vantagens da flexibilidade negociai privada com o rigor da coercitividade estatal",7 em troca da antiga Administração centralizada, burocrati-zada, lenta, inflexível e sujeita a ingerências do poder central.

Constituição Federal

O constituinte de 1988 adotou posicionamento muito claro no que tange ao papel do Estado na economia, situando o Brasil no contexto de pós-modernidade. Merece destaque, nesse sentido, o seu Capítulo I, Título VII, da Carta Magna.

Nesse Capítulo, como assevera o Prof. Eros Roberto Grau,8 restaram bem claras três possibilidades de atuação do Estado na economia: (i) através da exploração direta de atividade econômica (CF, art. 173); (ii) como prestador, direta ou indiretamente, de serviço público (CF, art. 175); (iii) como agente normativo e regulador da atividade econômica (CF, art. 174).

A toda evidência, a atuação de intervenção econômica a cargo da CVM não se confunde com a excepcional atuação direta na atividade econômica (CF, art. 173), nem com a atuação de prestador de serviço público (CF, art. 175). Isso porque a regulação do mercado de capitais consiste, em poucas palavras, em disciplinar o sistema de financiamento das empresas que captam recursos de forma direta do público, através da emissão de valores mobiliários.

Não há dúvida, por conseguinte, de que a atuação da CVM deve ser analisada e percebida à luz do comando contido no art. 1749 da Constituição da República, dispositivo que, como referido, trata da atuação estatal como agente normativo e regulador da atividade econômica, isto é, nos moldes característicos da atuação estatal pós-moderna.

Para corroborar essa assertiva, basta lembrar que a CVM, com a reforma empreendida pela Lei 10.303/2001 sobre a Lei 6.385/1976 (Lei que criou a CVM e estabeleceu sua competência), passou a ser dotada de...

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