A Defesa dos animais e as conquistas legislativas do movimento de proteção animal no Brasil

AutorEdna Cardozo Dias
CargoDoutora em direito pela UFMG, Profª de Direito Ambiental e Urbanístico
Páginas149-168

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1. Introdução: breve relatório sobre os fundamentos filosóficos da proteção animal

A relação do ser humano com os animais sempre foi regida pela noção de domínio. Acostumado à idéia de legitimidade da exploração dos animais e da natureza, o homem tem agido, muitas vezes, com arbitrariedade, torpeza e irresponsabilidade.

No pensamento grego antigo o homem fazia parte do Universo sem qualquer autonomia. A justiça do Estado se confundia com as leis

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da natureza, uma vez que o homem, imerso na totalidade do cosmo obedecia às leis físicas ou religiosas que o regiam. Esta concepção é um jusnaturalismo cosmológico.

Os pré - socráticos já afirmavam o tema essencial da unidade. Com a crise ética e moral do século V a.C. os sofistas deslocaram o conhecimento do cosmo para o homem. Com os sofistas as indagações sobre a ordem cósmica cedem lugar às indagações sobre a ordem humana.

É a partir de Sócrates, com a máxima Conhece-te a ti mesmo 1 que o ser humano começa a engendrar o antropocentrismo.

Aristóteles em " A Política" argumenta que a família se forma da união do homem com a mulher, do senhor com o escravo. E que a primeira família se formou da mulher e do boi feito para a lavra. O boi serve de escravo aos pobres.2Aristóteles vê no fato do homem ter o dom da palavra uma forma de elevação, ao ser comparado com os outros animais que só tem a voz para expressar o prazer e a dor. Ele vê como natural o domínio do homem sobre o animal da mesma forma que para ele é natural o domínio do homem que tem idéias sobre aquele que só tem a força. Aristóteles inclui o animal na sociedade como escravo.

Já nos estóicos encontramos a idéia de que o direito natural é comum a homens e animais. Essa idéia de que todos os seres vivos estão sujeitos a uma lei, bem como a um Deus, logos, ratio ou pneuma - é um dos princípios fundamentais do estoicismo. Todos os seres vivos participam da ratio universal. Porém preconizavam a idéia de que a aplicação da justiça é apenas para os seres racionais. O estoicismo, de certa forma, é o precursor da teoria do contrato social.

Mas, entre os gregos a antropocentria teve uma visão limitada. Com o cristianismo o intelectualismo grego cede lugar ao voluntarismo de Deus. As atitudes generalizadas de domínio e maus tratos com os animais encontram respaldo na crença bíblica de que

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Deus outorgou ao homem o domínio sobre todas as criaturas viventes. Tudo isto era mais que uma crença, era um dogma de fé. São Thomaz de Aquino afiançou o dualismo ecológico judaico - cristão, em seu " Tratado de Justiça" afirmando que " Ninguém peca por usar uma coisa para o fim a que foi feita. As plantas vivem em função dos animais e os animais das plantas".3 Costumava evocar estas palavras de Santo Agostinho, em a Cidade de Deus , livro 1, cap. 20: " Por justíssima ordenação do Criador, a vida e a morte das plantas e dos animais está subordinada ao homem".

O pensamento filosófico ocidental continuou assentado nessa dualidade ontológica , que criou uma separatividade entre o homem e a natureza, e legitimou toda sorte de exploração dos animais. Assim seguiram o romantismo, o humanismo, o racionalismo, que colocaram o homem no centro do Universo.

O pensador Francis Bacon defendeu uma atitude experimentalista face aos animais e a filosofia de dominação e manipulação da natureza.

Com Descartes o racionalismo atingiu a sua culminância. Com sua máxima " Cogito ergo sum - penso, logo existo - 4reduziu o homem à sua mente. Isto alienou o homem da natureza e dos demais seres humanos, levando a uma absurda desordem econômica, injusta divisão de bens, e uma onda crescente de violência. Nesta época difundiu-se na Europa a prática da vivissecção, que é o ato de realizar experimentos em animais vivos.

De um lado encontramos em Galileu, Descartes e Newton pensamentos que constituíram a base da revolução tecnológica e de outro, a linha que começa com Montaigne, Rousseau e Goethe, que defendem o pensamento não manipulador da natureza.

Montaigne acreditava que o Criador nos pôs na terra para servilo e os animais são como nossa família. Pregava o respeito não só pelos animais, mas às árvores e plantas. Montaigne dizia que aos homens devemos justiça , mas aos animais devemos solicitude e benevolência.

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Rousseau atribuía à sociedade a origem de todos os males e a instituição das desigualdades. Em sua 7ª caminhada no livro " Devaneios de um caminhante solitário" ele critica o uso de animais em experimentos e a visão das plantas como bem utilitário na confecção de remédios. E afirma que nunca julgou que tanta ciência contribuísse para a felicidade da vida. Rousseau se refugiava na natureza para se furtar à lembrança dos homens e aos ataques dos maus.

Goethe criticava o ser humano por só valorizar as coisas na medida em que lhe são úteis, e por se arrogar o direito de classificar algumas plantas como ervas daninhas, ao invés de vê-las como crianças da natureza universal, tão amadas por ela quanto o trigo que o homem valoriza e cultiva.

Foi dentro desse pensamento que o filósofo inglês Thomas Hobbes de Malmesbury, com seu livro, o Leviatã , fundou a filosofia do direito individual moderno. Dando à linguagem o papel de formadora das relações sociais e políticas, ele excluiu os animais do contrato social. Para a formação do Estado é preciso um pacto, para cuja adesão é preciso a linguagem.

Locke, precursor do liberalismo inglês, coloca o homem em sua origem como senhor de todas as criaturas " inferiores" podendo fazer delas o que lhe aprouver. Pregava que, em princípio, tudo pertence a todos e a força do trabalho pertence a cada um individualmente, o que vem a constituir a primeira forma de propriedade privada. Segundo ele o homem pode se apossar dos frutos e das criaturas da terra. Locke retirou o animal da natureza tornando-o propriedade privada. Dizia que a natureza extra humana não tem vontades e nem direitos, são recursos à disposição de toda humanidade.

Depois de Hobbes e Locke a natureza não humana ficou fora do contrato social ou subjugada.

Na cultura ocidental, em sua vertente liberal e socialista o direito natural se limitava à natureza humana. O liberalismo e o socialismo outorgaram ao homem o título de rei da criação. E este pensamento tomou força depois das revoluções francesas e industrial. Tanto que na Declaração dos Direitos do Homem está dito: " Todo homem". Não se reconhecem direitos para a natureza não humana.

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Só em 1978, quase duzentos anos depois foi proclamada na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco a Declaração dos Direitos dos Animais, onde está dito: " Todos os animais nascem iguais perante a vida e tem os mesmos direitos à existência."

O filósofo francês Michel Serres, em seu livro " Le Contrat Naturel ( Éditions Bourin, França, 1990) defende a idéia de que é chegada a hora de substituirmos a Teoria do Contrato Social ( de Hobbes), pela Teoria do Contrato Natural.

Para Serres a o homem deve buscar o estado de paz e o amor, e para tal deve renunciar ao contrato social primitivo para firmar um novo pacto com o mundo: o contrato natural.

Serres preconiza a revisão conceitual do direito natural de Locke, pelo qual o homem é o único sujeito de direito.

O mundo que foi visto como nosso senhor, depois se tornou nosso escravo, em seguida passou a ser visto como nosso hospedeiro, e agora temos que admitir que é, na verdade, nosso simbiota.

Para Serres, homem parasita da natureza e do mundo, filho do direito de propriedade, tudo tomou e não deu nada. A Terra hospedeira deu tudo e não tomou nada. Um relacionamento correto terá que se assentar na reciprocidade. Tudo que a natureza dá ao homem ele deve restituir.

Hoje a filosofia e a ciência já admitem a unidade do cosmo. E nessa unidade não há hierarquia. Os componentes dos átomos e partículas atômicas são padrões dinâmicos que não existem como entidades isoladas, mas como partes de uma rede inseparável de interações. Os físicos modernos nos mostram que toda matéria -tanto na terra como no espaço externo - está envolvida numa contínua dança cósmica . Tudo no espaço está conectado a tudo mais, e nenhuma parte dele é fundamental. As propriedades de qualquer parte são determinadas, não por alguma lei fundamental, mas pelas propriedades de todas as demais partes. O físico Heisenberg, ao estudar o mundo material, mostrou-nos a unidade essencial de todas as coisas e eventos. O mundo está envolvido em uma grande unidade, nenhum elemento está isolado, nem na

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extensão presente nem na história. Átomos e mundos são levados por um só impulso e o resultado disso é a vida.

É a mesma conclusão a que chegam os místicos partindo do reino interior, enquanto os físicos partem do reino exterior.

Esta maneira nova que os físicos nos mostram de ver o Universo é a essência do Tao, fundado por Lao - Tsé ; e do Zen, que nos ensina a não nos apegarmos ao pensamento dos contrários, dos opostos. O Ser em sua plenitude está unido a tudo que vive. Essa unidade abole todas as diferenças. O ensinamento da unidade é a essência do Zen e do Tao.

Esta é, também, a cosmovisão dos pré-socráticos, que concederam ao cosmo uma alma. Logos, o princípio...

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