Experimentação animal: um estudo de caso numa universidade baiana

AutorGilmar Miranda Freire
CargoAcadêmico de Direito da Universidade Católica do Salvador
Páginas309-321

Ver nota 1

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1. Introdução

"Dor é experiência intrinsecamente má, para qualquer ser que a sofre."2Abordaremos, aqui, uma temática voltada prioritariamente à condição do animal na comunidade científica contemporânea, sobretudo a questão do especismo, ideologia análoga aos princípios racistas e sexistas, onde o homem, num pensamento antropocêntrico, entende os interesses de sua espécie como superior aos de todas as outras e, fundamentado nisso, expõe essas outras espécies a situações deploráveis para atender aos seus objetivos, mesmo que fúteis.

Nas palavras de Singer (2002, p. 52), o especismo "é um preconceito ou atitude parcial em favor dos interesses dos membros de nossa própria espécie e contra os interesses dos membros de outras espécies". Nesse sentido, utilizando o falso discurso do progresso (seja científico ou de outra ordem), o homem leva as demais espécies a todo tipo de sofrimento, e, considerando os avanços técnico-científicos que a humanidade obteve ao longo da sua existência, podemos considerar esta brutalidade a que são submetidos os animais supérflua e retrógrada.

Os antolhos postos pela ambição impede que os seres humanos percebam os prejuízos que o abuso aos direitos dos animais trazem à humanidade. O intuito de alertar àqueles que cultivam a ideologia especista desse fato, cabe a todos que estão compromissados com a noção de moralidade. Assim, constitui o objetivo dessa pesquisa discorrer acerca dos maus tratos e de suas conseqüências altamente prejudiciais à vida, inclusive a do homem, o qual ainda não compreendeu, sobretudo, numa perspectiva ética, a existência da Lei Universal de causa e efeito ou, de acordo com os gregos, o significado de um tempo cíclico. Entretanto sempre ressaltando a dignidade dos animais e a importância de se pensar a vida animal pelo animal.

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2. A experimentação numa perspectiva ético-social

Nas últimas décadas, a Filosofia vêm discutindo novos padrões de ética para a conjuntura atual de nossa sociedade. A insensibilidade humana chega a tal ponto que até mesmo as futilidades consumistas - como moda e diversão - são fortes argumentos para justificar as dores massivas e o sofrimento impostos aos animais. É estimado que cerca de 500.000.0003de vidas são assassinadas anualmente pela prática da experimentação animal, sendo que, deste número, subtrai-se répteis, ratos, peixes, aves, animais de rebanho ou fabricados para o abate, os quais totalizam 90% dos animais usados em experimentos.

Com o discurso falacioso de que tais experimentos são indispensáveis ao desenvolvimento de benefícios endereçados ao homem, esta indústria, de ciência ultrapassada, alicerça-se na ignorância demasiada e ainda hodierna da humanidade. Dessa forma, milhões de animais são mortos em experimentos para o desenvolvimento de novos produtos, morte esta desnecessária, uma vez que estes deverão ser novamente testados naqueles que realmente os irão usufruir, os homens.

Segundo a filósofa Sônia Felipe:

...está-se a procurar a cura para as doenças humanas de modo inadequado. Usam-se, nos experimentos, organismos impróprios. Produzem-se, artificialmente, nos animais, doenças que a sua natureza não sofre, a não ser pelas mãos do investigador (FELIPE, 2007, p. 321).

Além disso, há de ressaltar que qualquer doença que seja provocada deliberadamente é diferente daquela que surge espontaneamente. Ainda segundo Sônia:

toda violação da natureza, quando esta natureza é de um organismo vivo dotado de sensibilidade e consciência, implica danos, dor, sofrimento, quando não em morte, para quem foi violado. Por essa razão, toma-se muito cuidado quando o paciente experimental é um humano. Mas, o mesmo dano, dor, sofrimento e morte também

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ocorre com pacientes experimentais não-humanos, animais dotados de sensibilidade e consciência (FELIPE, 2007, p. 317/318).

Um dos maiores pilares para a sustentação da insensibilidade humana é a afirmação de que os animais não possuem alma. Este pensamento de utilizar a alma como um instrumento discriminatório para a inferiorização das minorias já é muito antigo, pois, no passado, outros grupos minoritários não tinham direitos por "não terem alma". Os negros e os índios, por exemplo, eram considerados seres destituídos de alma e, por isso, podiam ser escravizados, torturados e humilhados, assim como a mulher que não era respeitada pelo seu marido, não passando de um mero instrumento do lar, já que, da mesma forma, era inanimada.

Algo contraditório e estarrecedor é o fato de que a brutalidade a que são submetidos os animais, no uso da experimentação, é infligida por seres humanos dotados, em sua maioria, de grande capacidade racional e profundos conhecimentos - tanto em ciência quanto em moral, dado o status de cientista que é atribuído a estes. Este comportamento agressivo à seres inocentes e indefesos inverte diametralmente as expectativas que se pode ter acerca de uma pessoa que detém uma expressiva dedicação aos estudos e, por conseqüência, uma intelectualidade refinada. Isto ocorre porque intelectualidade e moralidade são independentes, são atributos isolados, mas que deveriam atender a uma determinada relação de causa e conseqüência, como bem alerta a 6ª tese4de Humphry Primatt.

Em torno da discussão da existência ou não da alma, o filósofo Jeremy Bentham faz a acertada colocação à utilização dos animais em experimentos: "A questão não é: eles são capazes de raciocinar? Nem tampouco seria: eles são capazes de falar? A questão é: eles são capazes de sofrer?"5. Essa afirmação é uma das importantes referências para se começar a pensar a condição animal despido das barreiras impostas pela ideologia especista, pois ela nos obriga a pensar o animal por ele próprio. E, tam-

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bém, insere a senciência - a capacidade de sentir - como a única justificativa moral para ignorar os interesses de outros seres.

No campo da ética religiosa...

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