Direito animal e os paradigmas de Thomas Kuhn: Reforma ou revolução científica na teoria do direito?

AutorTagore Trajano de Almeida Silva
CargoPesquisador e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Público da Universidade Federal da Bahia - UFBA
Páginas239-269

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1. Introdução

A idéia de relacionar a Teoria Científica de Thomas Kuhn com os conceitos propostos pela Teoria dos Direitos dos Animais é antiga. Kuhn

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propõe um estudo diferenciado da ciência ao considerar elementos como a história e a política que até então eram desprezados pelos cientistas normais3de sua época.

Foi nas aulas de Metodologia da Pesquisa, ministrada pelos professores Nelson Cerqueira e Rodolfo Pamplona, que o intento cognitivo teve que se transformar numa realidade fática. Ao conhecer mais profundamente os textos de Thomas Kuhn, Paul Karl Feyerabend e Karl Popper nas aulas de Medotodogia, a possibilidade de arriscar uma contribuição à Teoria dos Direitos dos Animais enfim transformouse em palavras.

Tal como dito por Feyerabend, minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto da mesma espécie: minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites4 e que o atual estágio científico vislumbra a possibilidade da emergência de uma nova tradição científica.

Diferentemente de Karl Popper, percebe-se que processo teórico científico não se assemelha à prática científica de seus doutrinadores, já que para um paradigma ser dominante, ele precisará da aceitação de uma comunidade científica ampla que o sustente e o desenvolva, produzindo teorias e regras e aplicando os métodos daquele paradigma vigente. A transição de um paradigma em crise para um novo é uma reconstrução da área de estudo a partir de novas bases e teoremas5.

Escolheu-se como ponto de partida os trabalhos de Jean-Jaques Rousseau e Immanuel Kant, não por terem sido os primeiros a desconsiderar moralmente os animais, mas por constituírem a principal doutrina que nega direito para os animais.

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Rousseau e Kant recusavam-se a reconhecer direitos e deveres aos animais, uma vez que eles não eram dotados de racionalidade, mas sim de instinto.

Esta doutrina foi influenciada por Descartes que afirmava que animais e máquinas seriam semelhantes, já que são regidos pela mecânica de seus corpos.

Percebe-se que um paradigma que se propõe dominante não pode mais contar com uma anomalia tão grande. Desconsiderar o valor moral aos animais de forma arbitrária, configuraria o que os doutrinadores conceituam como Especismo e pior, desconsidera toda a produção científica elaborada ao contrário.

Sendo assim, este artigo pretende oferecer aos leitores um diálogo entre a teoria de Thomas Samuel Kuhn, especialmente a contida no seu livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", e os principais autores da doutrina dos Direitos dos Animais.

O objetivo do presente ensaio é responder à pergunta elaborada por Thomas Kuhn sobre o progresso científico e a emergência de um novo paradigma como uma nova concepção de mundo. Então, questionase no presente ensaio se o atual estado da arte da doutrina dos direitos dos animais representa a emersão de um novo paradigma para o direito ou configuraria uma adequação e provável extensão do paradigma racionalista contratualista vigente.

Dentro da doutrina dos direitos dos animais, a resposta será pinçada nos textos dos professores Peter Singer e Tom Regan.

2. Thomas Kuhn e seus conceitos chaves

Thomas Samuel Kuhn nasceu em 18 de julho de 1922 em Cincinnati, no estado de Ohio (Estados Unidos). Ingressou, em 1940, na Universidade de Harvard, para estudar Física, onde concluiu o doutorado em 19496.

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Ensinou nas Universidades da Califórnia, em Berkeley e Princeton, onde permaneceu até 1979. A partir de 1979, passou a ser professor em Harvard, onde, 12 anos depois, foi nomeado professor emérito, falecendo em 19967.

Seu livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", publicado em 1962, é a principal obra de Kuhn, no qual ele afirma que a ciência não se desenvolve através da obediência rígida a cânones metodológicos, mas, sim, por empreender uma prática convergente e unificada de pesquisa, possível por meio da aquisição de paradigmas8.

A atividade desorganizada e diversa que precede a formação da ciência torna-se um pouco organizada, estruturada quando a comunidade científica atém-se a um paradigma. Segundo Kuhn, um paradigma é composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação adotadas por uma comunidade científica específica9.

[...] A investigação histórica cuidadosa de uma determinada especialidade num determinado momento revela um conjunto de ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na observação. Essas são os paradigmas da comunidade, revelados nos seus manuais, conferências e exercícios de laboratório10.

Para Kuhn, os cientistas que trabalham dentro de um paradigma praticam a ciência normal. O papel do cientista normal é o de articular e desenvolver o paradigma, a fim de explicar e de acomodar aspectos relevantes do mundo real11.

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O reconhecimento do período de ciência normal para Kuhn irá caracterizar o compromisso por parte dos cientistas com o paradigma vigente. Este compromisso leva o cientista a perscrutar aspectos da natureza com a convicção de que, se for muito habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém até então resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem12.

No período de ciência normal, os cientistas se esforçam para aproximar sempre mais a teoria e os fatos. Deferentemente de autores como Popper que pensam esta atividade como um teste ou uma busca de confirmação ou falsificação, Kuhn entende que esta atividade consiste em resolver um quebra-cabeça, cuja simples existência supõe a validade do paradigma13.

Segundo Kuhn, os cientistas normais devem pressupor que um paradigma lhes dê os meios para a solução dos problemas propostos em seu interior. Problemas que resistem a uma solução são vistos como anomalias e não como falsificações de um paradigma14.

Uma anomalia pode caracterizar um estado de crise de um paradigma, no momento em que a ciência normal não consegue: 1) tratar com os problemas dentro das regras do paradigma vigentes; 2) os cientistas concluem que nenhuma solução para o problema poderá surgir no estado atual da área de estudo; e 3) caracterizar a emergência de um novo candidato a paradigma com uma subseqüente batalha para sua aceitação15. A mudança descontínua constitui uma revolução científica16.

Consoante o entendimento de Kuhn, a transição de um paradigma em crise para um novo, acontece com o surgimento de uma nova tradição

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de ciência normal. Este processo não é cumulativo, já que não absorve as articulações do velho paradigma. Na verdade, é uma espécie de reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, métodos e aplicações17.

[...] a emergência de uma nova teoria rompe com uma tradição da prática científica e introduz uma nova dirigida por regras diferentes, situada no interior de um universo de discurso também diferente, que tal emergência só tem probabilidades de ocorrer quando se percebe que a tradição anterior equivocou-se gravemente18.

Uma revolução científica corresponde ao abandono de um paradigma e adoção de um novo. Episódio de desenvolvimento nãocumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior19.

3. A exclusão dos animais: Um estudo do paradigma dominante

A ciência se desenvolve de acordo com o paradigma ao qual ela está vinculada. O paradigma moderno adotado pelo Direito é influenciado por uma visão antropocêntrica que exclui os animais da esfera de consideração moral humana.

Podemos dizer que os precursores desta teoria são os contratualistas.

J. Althusius (1557-1638), T. Hobbes (1588-1679), B. Spinoza (1632-1677), S. Pufendorf (1632-1694), J. Locke (1632-1677), J. J. Rousseau

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(1712-1778), I. Kant (1724-1804), que estabeleciam um contrato social em que apenas os seres humanos participariam20.

Para os contratualistas, o reino animal seria regido por instintos e impulsos, diferentemente do reino humano, tangido pela razão, onde, pelo contrato, é possível unificar as vontades singulares21.

Dentre os autores citados, Jean-Jaques Rousseau e Immanuel Kant são os que irão fundar, baseados no conceito de racionalidade, o critério de diferenciação entre homens e animais. Para eles, o único animal dotado de razão seria o Homem, ser provido de luz e liberdade, capaz de reconhecer seus deveres e reconhecer os fundamentos da lei22.

Para Rousseau, os animais seriam semelhantes aos humanos por serem dotados de certa sensibilidade. Por este motivo, o Homem seria sujeito em relação a eles a uma espécie de deveres.

Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro23. (grifos nossos)

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Ora, percebe-se que Rousseau estabelece padrões, a fim de coordenar um grupo de cientistas que, a partir dele, não atribuiria direitos para os animais24. O...

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