Exercício de Percepção Jurídica do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos através da Teoria Tridimensional do Direito

AutorOctaviano Langer; Cesar Luiz Pasold
Páginas121-136

Octaviano Langer. Aluno Especial do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Discente da disciplina Fundamentos da Percepção Jurídica, ministrada no semestre 2008.II. Email: amello@univali.br.

Cesar Luiz Pasold. Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo/USP; Pós-Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná/UFPR; Advogado – OAB/SC 943, Diretor Presidente do Advocacia Pasold e Associados – OAB/SC 059/90; Professor das Disciplinas "Metodologia da Pesquisa Jurídica", "Teoria do Direito Portuário", e "Fundamentos da Percepção Jurídica" no Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Consultor Científico da UNOESC. Consultor ad hoc da CAPES. Autor, entre outros, do livro Ensaio sobre a Ética de Norberto Bobbio. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. Co-autor, entre outras, da obra Novos Direitos - Conquistas e Desafios. Curitiba: Juruá, 2008. Email: amello@univali.br

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Introdução

Neste artigo, a Teoria Tridimensional do Direito, idealizada por Miguel Reale, é utilizada como base teórica para compor um instrumento de Percepção Jurídica aplicável ao Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos.

A partir da teoria de Miguel Reale, pretende-se caracterizar os elementos fáticos, axiológicos e normativos que possam ter influenciado na elaboração do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos na versão à data do presente artigo1, percebendo a interação desta tríade (fato-valor-norma) com outras duas importantes variáveis (cronologia e poder) na composição do Anteprojeto.

O conceito operacional adotado para "Percepção Jurídica" é: a "ferramenta com a qual se examina, sob aporte(s) doutrinário(s) eleito(s), norma jurídica (legal; consuetudinária; jurisdicional; negocial), descrevendo-a e emitindo juízos valorativos a respeito dela"2.

Utilizou-se o método indutivo na fase de investigação, o método cartesiano na fase de tratamento dos dados recolhidos, e os resultados são apresentados sob o método indutivo, sendo operadas as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica (PASOLD, 2008, p. 25-74, 81-105.

1 Considerações gerais acerca da Teoria Tridimensional do Direito

A Teoria Tridimensional do Direito, idealizada por Miguel Reale, propõePage 123 que o Direito não seja apenas norma, como também não seja apenas valor, nem tampouco apenas fato. O Direito, para Reale, é uma "integração normativa de fatos, segundo valores", sendo que "toda a norma jurídica assinala uma tomada de posição perante os fatos em função tensional de valores", resultando que o Direito "só se constitui quando determinadas valorações dos fatos sociais culminam numa integração de natureza normativa" (REALE, 1994, 96-7, 103, grifo do autor).

Para Reale, a experiência jurídica pode ser compreendida através da implicação polar fato-valor, que resulta em um processo normativo integrante.

Nas palavras deste autor:

cada norma ou conjunto de normas representando, em dado momento histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e a sua aplicação (REALE, 1994, p. 74, grifo do autor).

Tais elementos se correlacionam numa relação dialética denominada por Reale (1994) de "dialética da complementariedade", sendo que

a compreensão do direito como "fato histórico-cultural" implica o conhecimento de que estamos perante uma realidade essencialmente dialética, isto é, que não é concebível senão como processus, cujos elementos ou momentos constitutivos são fato, valor e norma, a que dou o nome de "dimensão" em sentido, evidentemente, filosófico, e não físico-matemático. (p. 75, grifo do autor).

Ademais, as manifestações jurídicas, percebidas sob as três dimensões fato, valor e norma, interagem com duas outras importantes variáveis: tempo e poder.

A elaboração de uma norma jurídica é um processo em que se insere positivamente o poder, "quer o poder individualizado em um órgão do Estado, que o poder anônimo difuso no corpo social" (REALE, 1994, p. 61). E tais normas podem sofrer alterações semânticas, "pela superveniência de mudanças no plano dos fatos e valores" (REALE, 1994, p. 101) pelo transcorrer do tempo.

Por fim, na dialética das três dimensões, fato, valor e norma, a distinção vetorial destes elementos determinará três possibilidades epistemo-críticas: na Filosofia do Direito: compreensão axiológica de fatos em função de normas (fato→norma→valor); na Sociologia do Direito: compreensão factual de normas em função de valores (valor→norma→fato); na Ciência do Direito: compreensão normativa de fatos em função de valores (valor→fato→norma) (REALE, 1994, p. 151).

2 Aplicação da ferramenta quanto ao fato

Para a análise fática dos aspectos destacados da tutela de direitos coletivos no Brasil, em especial a origem e os motivos da composição do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, deve-se inicialmente buscar em Miguel Reale o conceito de "fato".

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Para Reale (1994, p. 94-5, grifo do autor) o fato surge

desprovido de qualquer consistência estática e neutra. Põe-se, desde logo, como momento de um processo, um elo no encadeamento dos atos humanos, quer em função de atos anteriores, quer em razão de dados da natureza. [...] Envolve tanto aquilo que acontece, independentemente da iniciativa humana, mas adquire significado "inter homines" [...] como aquilo que intencionalmente é feito e se refere "ad alios". "Fato" é, por conseguinte, uma palavra que corresponde tanto ao particípio passado factum, de fieri (acontecer), com de facere (fazer).

Cabe então, para a definição do instrumento fático do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos, caracterizar a evolução da tutela coletiva no Brasil, e a busca da identificação dos motivos que levaram a elaboração de um Anteprojeto de Código de Processos Coletivos no ordenamento pátrio.

2. 1 A Evolução da Tutela Coletiva no Brasil: Breve Relato

Já na década de 60 o legislador brasileiro demonstrou preocupação com os direitos e interesses da coletividade, podendo-se indicar como um dos marcos iniciais da tutela coletiva no Brasil a regulamentação da Ação Popular em 1965 (através da Lei n. 4.717/65), instrumento jurídico que amparava os interesses da comunidade e que foi elevada a "status" de ação constitucional pela Constituição Brasileira de 1998.

Tal preocupação, destarte, manteve-se presente nas casas legislativas federais, tanto que em 1985 foi disciplinada a ação civil pública (Lei n. 7.347/85).

Ainda que tenha surgido "com o seu campo de aplicação restrito tanto quanto aos setores de sua incidência como em relação aos interesses que podiam ser defendidos mediante a utilização do novo instrumento processual" (MEIRELLES, 2003, p. 162), alterações legislativas posteriores acabaram por tornar a ação civil pública o principal meio para a tutela dos direitos oriundos das transformações sociais de então, também chamados "novos direitos" e que foram posteriormente nominados pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) como direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

A Constituição Brasileira de 1988, contudo, tem sido o grande marco para a tutela dos direitos e interesses coletivos latu sensu. Ao assegurar inúmeros direitos e garantias individuais e coletivas, bem como uma série de direitos sociais, o legislador constituinte atribuiu à tutela coletiva importância destacada.

A defesa dos direitos do consumidor, do meio ambiente, dentre outros exemplos, será tanto mais eficaz, quando mais coletivamente forem tratados e defendidos. A ampliação dos poderes do Ministério Público, e as inúmeras garantias concedidas aos seus membros para a defesa da Sociedade, com destaque para o zelo dos direitos difusos e coletivos, também demonstra a mudança de enfoque do constituinte para a importância da tutela coletiva.

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Observa-se, pois, que a legislação tratando da tutela coletiva no Brasil não é recente. Ainda que a Lei da Ação Civil Pública (LACP) tenha sofrido algumas reformas há pouco tempo,como as Leis 9.494/97 e 10.741/97, que alteraram alguns artigos da LACP, grande parte dos dispositivos legais relacionados à tutela coletiva já completaram 20 anos ou mais de vigência.

Mazzili (2005, p. 58) constata:

Interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos sempre existiram; não são novidade de algumas poucas décadas. Nos últimos anos, apenas se acentuou a preocupação doutrinária e legislativa em identifica-los e protegêlos jurisdicionalmente, agora sob o processo coletivo. A razão consiste em que a defesa judicial de interesses transindividuais de origem comum tem peculiaridades: não sé esses interesses são intrinsicamente transindividuais, como também sua defesa judicial deve ser coletiva, seja em benefício dos lesados, seja ainda em proveito da ordem jurídica.

E conclui:

Dessa forma, o legislador estipulou regras próprias sobre a matéria, especialmente para solucionar problemas atinentes à economia processual, à legitimação ativa, à destinação do produto da indenização e aos efeitos de imutabilidade da coisa julgada.

O que se percebe, contudo, é a dificuldade de instrumentalização...

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