O Reconhecimento da Insignificância em Relação aos Delitos Contra a Ordem Tributária e ao Estelionato Contra a Fazenda Nacional

AutorAdriane Pinto Rodrigues da Fonseca Pires
CargoMestranda em Ciências Criminais (PUCRS). Analista Judiciária junto ao Tribunal Regional Federal da Quarta Região
Páginas24-32

Page 24

1. O princípio da insignificância como critério utilitarista de afastamento da tipicidade

Dada a relação entre os modelos de crime e os modelos estatais, e tomada a constituição na acepção de "ordem jurídica fundamental de uma comunidade ou o plano estrutural para a conformação jurídica de uma comunidade, segundo certos princípios"1, é inegável que a lei fundamental demarca limites para a intervenção do Estado na área penal. Essa restrição se impõe, eminentemente, pela necessária compatibilização da exigência da punição de determinadas condutas com o comprometimento com a tutela de direitos fundamentais do Estado Democrático e Social de Direito.

Nesse contexto, deve-se destacar que o texto constitucional não é um parâmetro de incriminação em si, pois, na condição de estatuto político, a constituição é um produto cultural, cuja elaboração é precedida do anterior reconhecimento social de determinados valores ou interesses. Isto quer dizer que "antes de serem bens ou valores recolhidos pelo Direito (bens jurídicos), eles se fazem constituídos como tais na consciência social, extraídos que são dos costumes vigentes em uma sociedade e, por consequência, de suas necessidades"2.

A partir da recepção do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos3, conceituados estes como "dados ou inalidades necessários para o livre desenvolvimento do indivíduo, para a realização de seus direitos fundamentais ou para o funcionamento de um sistema esta-tal baseado nessas inalidades"4, é correto dizer-se que a função do direito penal é a tutela subsidiária de alguns destes bens, isto é, "o direito penal é um instrumento qualificado de proteção de bens jurídicos especialmente importantes"5. Sua tarefa

Page 25

se encerra, portanto, na tutela destes últimos.

Assim, pode-se considerar que "um bem jurídico criminalmente tutelável existe ali, e só ali, onde se encontre reletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode air-mar que preexiste ao ordenamento jurídico-penal"6. A normatividade penal orienta-se pela normatividade constitucional, de onde se extraem tanto imposições como proibições de incriminação.

Deste modo, a legitimidade das restrições às liberdades decorrente da criminalização pode ser pensada a partir de sua relação de harmonia com a ordem axiológico-jurídico constitucional, que atua como "um quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, critério regulativo da atividade punitiva"7.

A estrutura e os ins do tipo pe-nal acham, pois, seu embasamento no bem jurídico-penal, conceituado este como "todo o valor digno e necessitado de tutela penal"8. Para Schunemann, "a determinação do bem jurídico não é formulada ape-nas ao inal do processo de interpretação, como etiqueta inal, mas ela dirige a concretização da matéria de proibição [de modo que] se pode dizer que a ideia de bem jurídico é imanente e crítica"9. Está-se, pois, frente a um juízo valorativo que resulta na escolha de bens jurídicos que sejam merecedores de proteção penal.

A incriminação, por implicar restrição da liberdade, deve se dar em prol de valores dignos desse tipo de tutela. Para Fábio D’Avila,

"esse ‘modelo de crime como ofensa a bens jurídico-penais’ atribui ao ilícito uma ‘posição privilegiada’ na estrutura dogmática do crime, eis que portador, por excelência, do juízo de desvalor da infração enquanto elemento capaz de traduzir para além da intencionalidade normativa, também a própria função do direito penal, como propõe a noção de ‘ofensa a bens jurídicos’, a noção de ‘resultado jurídico’ como a pedra angular do ilícito-típico."10

Essa concepção, por não ignorar o caráter de historicidade dos bens jurídicos penalmente relevantes (protegidos pela norma), tem na ofensa (dano ou perigo de dano) a esse bem o seu substrato material legitimador da inter-venção penal. A ve-rificação da ofensa, em todas as suas modalidades, atua como diretriz - orienta e delimita a produção legislativa penal.

A ofensividade revela-se, pois, como uma "imposição constitucional de legitimidade"11 do ordenamento jurídico-penal. Tal postura importa a aceitação de que o conteúdo do ilícito penal estabelece-se, como realidade, a partir do reconhecimento da ofensa (dano ou perigo de dano) a esses bens (valores ou interesses). E, assim, por ser a ofensividade "o resultado jurídico da relação entre a conduta típica e o objeto de tutela da norma"12, quando ausente ofensa a bem jurídico detentor de dignidade penal, não há crime por ausência de tipicidade material.

Dito isso, deve a atividade legislativa13 observar que a incriminação é pautada pela função subsidiária da tutela penal (condição de ultima ratio ostentada pelo direito penal). Há que se perquirir acerca da existência de alternativa extra-penal idônea. A intervenção penal deve ser mínima, garantindo que "o direito penal continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente"14. Apenas diante do fracasso de outras formas de controle social previstas nos demais ramos do direito é que se recorre ao direito penal.

A INCRIMINAÇÃO, POR IMPLICAR RESTRIÇÃO DA LIBERDADE, DEVE SE DAR EM PROL DE VALORES DIGNOS DESSE TIPO DE TUTELA

Nesse contexto, coloca-se presente a necessidade de, além dos critérios legitimadores da incriminação, serem estabelecidos, para o intérprete da lei, parâmetros inter-pretativos, eis que não se mostra suiciente que o fato encontre cor-respondência narrativa na descrição na norma penal incriminadora (tipicidade formal). Nas hipóteses em que a conduta não seja material-mente típica (aptidão a ofender um bem jurídico), afasta-se a aplicação da norma penal.

Uma dessas possibilidades de reconhecimento da atipicidade, que tem como premissa a concepção material do tipo penal, é a aplicação do princípio da insignificância, expressão cunhada por Claus Roxin em 1964 como "princípio de validade geral para a determinação do injusto"15. Este princípio, na qualidade de "instrumento de interpretação restritiva"16, tornou-se um balizador utilizado tanto pela doutrina como pela jurisprudência17 para a aferição de condutas que, penalmente, não pos-suem significação.

No entender de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes,

"a imperfeição do trabalho legislativo não evita que sejam subsumíveis também casos que, em realidade, deveriam permanecer fora do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal. Para corrigir essa discrepância entre o abstrato e o concreto e para dirimir a divergência entre o conceito formal e o conceito material de delito, utiliza-se o princípio da insignificância."18

O princípio da insignificância é precedido, historicamente, pelo princípio da adequação social19, in-

Page 26

troduzido por Welzel para "restringir o teor literal do tipo"20, excluindo do âmbito do direito penal os comportamentos socialmente aceitos. Para Assis Toledo, "o princípio da adequação social se desdobra para alcançar inúmeras situações nem sempre ajustadas a regras éticas"21, mas tidas como socialmente aceitáveis. De modo diverso ao princípio da insignificância, o da adequação social está alicerçado sobre o desvalor da ação e não do resultado.

Assim, entende-se que o princí-pio da insignificância é a face inver-sa do princípio da ofensividade: se o resultado22 advindo de uma conduta que se amolda à descrição contida na norma incriminadora é ínimo, isto é, não provoca, efetivamente, dano, tampouco expõe a perigo o bem jurídico tutelado pelo tipo, tal comportamento não interessa ao direito penal. O reconhecimento do princípio da insignificância decorre, portanto,

"da concepção utilitarista que se vislumbra modernamente nas estruturas típicas do direito penal, [pois] no exato momento em que a doutrina evoluiu de um conceito formal a outro material de crime, adjetivando de significado lesi-vo a conduta humana necessária a fazer incidir a pena criminal pela ofensa concreta a um determinado bem jurídico, fez nascer a ideia de indispensabilidade do resultado concreto obtido ou que se pretenda alcançar."23

Adotar-se uma teoria que faça uso do critério da utilidade para deinir, racionalmente, as condutas que devem ser tidas como típicas ou atípicas implica a compreensão da referência adotada, ou seja, do conceito de utilitarismo24.

A ilosoia social distingue duas formas de utilitarismo: o individualista, que recomenda maximizar a própria utilidade do agente, e o social, que busca a maximização da utilidade social ou total. Diferencia um ato utilitarista, hipótese em que se avalia cada ação por seu próprio mérito, de uma regra utilitarista, a qual exige que certas regras sejam seguidas, regramentos estes tão imprecisos quanto o conceito de utili-dade25.

Segundo a ética utilitarista, o princípio da maior felicidade estabelece que as ações praticadas devem ser capazes de trazer a máxima felicidade para o maior número possível de indivíduos (humanidade) - o objetivo principal da ilosoia utilitarista. Se a maximização do prazer e a busca da felicidade são os ins últimos da ação humana, estes se constituem no padrão de morali-dade (regras e preceitos da conduta humana) a ser observada por toda a humanidade26.

Para essa doutrina, o sacrifício é justificado pela quantidade de fe-licidade global produzida - a ação moralmente correta é aquela que produz um resultado favorável ao maior número de pessoas. De modo inverso, o agir será moralmente incorreta se os resultados não forem favoráveis para a maioria27. Para

Comte-Sponville, trata-se de uma visão que "peca, talvez, por otimismo"28.

Num contexto onde o princípio da insignificância está intrinseca-mente relacionado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT