Aplicar a "letra da lei" é uma atitude positivista?

AutorLenio Luiz Streck
Páginas159-173

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Hermenêutica e interpretação

Embora a hermenêutica seja identificada e conhecida pela sua origem mitológica a partir de Hermes, o semi-deus que intermediava a relação dos deuses com os mortais, é apenas na modernidade - portanto, no seio de outro paradigma filosófico - que passamos a falar desse assunto de outro modo e por intermédio de outro olhar. 1Com efeito, compreendida stricto sensu, a hermenêutica como a discutimos hoje é um produto da modernidade, ou seja, nasce com a revolução provocada pelo nascimento do sujeito.

Assim, na história moderna, tanto no plano da teologia como no do direito, a hermenêutica tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito diretivo sobre a lei divina e a lei humana. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, seja em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o sentido a ser atribuído ao texto coloca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos ligados, no entanto, às condições de acesso do homem ao conhecimento acerca das coisas. Assim: ou se demonstra que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no ato interpretativo, mediante a criação, v.g, de uma teoria geral da interpretação; ou se reconhece que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e a sua aplicação a um determinado caso concreto não são, de fato, atos separados; ou se reconhece, finalmente, que as tentativas de colocar o problema hermenêutico a partir do predomínio da subjetividade do intérprete ou da objetividade do texto não passa(ra)m de falsas contraposições fundadas no metafísico esquema sujeito-objeto.

A crise que atravessa a hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Veja-se que as várias tentativas de estabelecer regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete com a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem ontológico-linguística (especialmente com Heidegger e Gadamer), superadoras do esquema sujeito-objeto. Essa viragem -que, se registre, supera o "primeiro" linguistic turn de viés analítico (e neopositivista) - deve ser compreendida a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel) e pela diferença ontológica (ontologische Differenz).

Não devemos esquecer que (ess)a viragem hermenêutico-ontológica, provocada pela publicação de Sein undZeit por Martin Heidegger, em 1927, e a publicação, anos depois, de Wahrheit und Methode, por Hans-Georg Gadamer, em 1960, foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir dessa ontologische Wendung, inicia-se o processo de superação dos paradigmas metafísicos objetivista (aristotélico-tomista) e subjetivista (filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm sustentado, de um lado, as teses exegético-dedutivistas-subsuntivas dominantes naquilo que vem sendo denominado de hermenêutica jurídica, bastando, para tanto, verificar a cisão feita pelas teorias da argumentação entre casos fáceis, solucionáveis por subsunção, e os casos difíceis, que exigiriam a "presença" dos princípios, e, de outro, um ingênuo "livre atribuir de sentidos", produto de uma equivocada compreensão do oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito.

Parece não haver dúvida de que o positivismo - compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do positivismo) - não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas consequências no plano da doutrina e da jurisprudência. Se isto é verdadeiro - e penso que é - a pergunta que cabe é: como é possível continuar a sustentar o positivismo nesta quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o constitucionalismo que revolucionou o direito no século XX? Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma resposta mínima pode e deve ser dada a essas indagações: o constitucionalismo - nesta sua versão social, compromissória (e dirigente) - não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades interpretativas. Page 160

1. Um necessário retorno a Kelsen: desmi(s)tificando o(s) positivismo(s)

Quando falamos em positivismos e pós-positivismos, torna-se necessário, já de início, deixar claro o "lugar da fala", isto é, sobre "o quê" estamos falando. Com efeito, de há muito minhas críticas são dirigidas primordialmente ao positivismo normativista pós-kelseniano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou decisionismos e protagonismos judiciais). Isto porque considero, no âmbito destas reflexões e em obras como Verdade e Consenso, 2 superado o velho positivismo exegético. Ou seja, não é (mais) necessário dizer que o "juiz não é a boca da lei", etc., enfim, podemos ser poupados, nesta quadra da história, dessas "descobertas polvolares". Isto porque essa "descoberta" não pode implicar um império de decisões solipsistas, das quais são exemplos as posturas caudatárias da jurisprudência dos valores (que foi "importada" de forma equivocada da Alemanha), os diversos axiologismos, o realismo jurídico (que não passa de um "positivismo fático"), a ponderação de valores (pela qual o juiz literalmente escolhe um dos princípios que ele mesmo elege prima facie), etc..

Explicando melhor: o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O "positivo" a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o neopositivismo lógico também teve a denominação de "empirismo lógico"). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento.

No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na medida em que se olha esse fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, onde predomina um exegetismo da legislação; e ao alemão, no interior do qual é possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos). No que tange às experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o direito romano exerceu na formação de seus respectivos direito privado. Não em virtude do que comumente se pensa - de que os romanos "criaram as leis escritas" - mas sim em virtude do modo como o direito romano era estudado e ensinado. Isso que se chama de exegetismo tem sua origem aí: havia um texto específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito. Este texto era - no período pré-codificação - o Corpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte "marcha": antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. A idéia era simples, aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano - dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba "criando" um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900).

A partir de então, a função de complementariedade do direito romano desaparece completamente. Toda argumentação jurídica deve tributar seus méritos aos códigos, que passam a possuir, a partir de então, a estatura de verdadeiros "textos sagrados". Isso porque eles são o dado positivo com o qual deverá lidar a Ciência do Direito. É claro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à interpretação desse "texto sagrado".

De algum modo se perceberá que aquilo que está escrito nos Códigos não cobre a realidade. Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não seja "destruída"? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que não eram bem quisitos pelo modo positivista de interpretar a realidade? Page 161 Num primeiro momento, a resposta será dada a partir de uma análise da própria codificação: a Escola da Exegese, na França, e A Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha.

Esse primeiro quadro eu menciono, no contexto de minhas pesquisas - e aqui talvez resida parte do "criptograma do positivismo" -, como positivismo primevo ou positivismo exegético. Poderia ainda, junto com Castanheira Neves, nomeá-lo como positivismo legalista. A principal característica desse "primeiro momento" do positivismo jurídico, no que tange ao problema da interpretação do direito, será a realização de uma análise que, nos termos...

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