Arbitrabilidade subjetiva. A competência da administração para a celebração de convenção arbitral

AutorLuiz Gastão Paes de Barros Leães
Páginas211-221

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1. Consulta

1.1 O Professor Àry Oswaldo Matos Fiího nos honra com a seguinte Consulta, formulada em nome da T. C. P. S/A, T. C. S/A, T. N. C. P S/A e A. C. S/A, doravante identificadas apenas como "Consulentes".

1.2 Em síntese, as companhias consulentes são todas sociedades por ações de capital aberto, controladas indiretamente pela N. Participações S/A. A N., por sua vez, é controlada, através de um acordo de acionistas, por Fundos de Previdência Privada, pelo O. F. e pelo O. M. S/A. Esses controladores entendem que ás companhias consulentes lhes são deyedoras de uma importância representativa, que decorreria do fato de que tinham contribuído significativamente para o incremento das mesmas, e, em contrapartida, sofrido um vultoso dano' financeiro em razão dos desentendimentos existentes entre os acionistas que compõem o bloco de controle e entre estes e os sócios minoritários da N.

L3 Pela alegada perda¿ os controladores pretendem receber reparação das próprias consulentes, a ser decidida e quantificada através de procedimento arbitral, a ser levado a efeito em Nova York.

1.4 Tendo em vista as dúvidas relativas aos poderes que a lei outorga aos administradores das companhias consulentes para a instauração de procedimento arbitrai para decidir esse eventual litígio, assim como as circunstâncias de fato e de direito que cercam a questão acima sucintamente exposta, pergunta-se:

  1. A diretoria das companhias consulentes teria competência para instaurar a arbitragem cogitada, a despeito de não existir disposição estatutária ou deliberação assemblear, ou mesmo decisão do conselho de administração, autorizando a adoção de tal modalidade de solução de controvérsias? ■ · . . .

  2. O compromisso arbitrai constitui ato de gestão típico de administração?

  3. Qual a natureza jurídica do compromisso arbitrai? Caso seja contratual, e tendo em vista que o acordo de acionistas da controladora N. (Cláusula Terceira, item 3.1) condiciona todos os negócios entre as sociedades consulentes, por ela controladas,^ os seus acionistas, à prévia aprovação por parte do conselho de administração da N., mediante voto qualificado, seria essa aprovação requisito de validade e eficácia desse compromisso?

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  4. Caso a competência para que a diretoria das companhias consulentes possa celebrar compromisso arbitral dependa da existência de previsão estatutária nesse sentido, seria necessária a alteração do estatuto das sociedades, adotando esse permissivo, mediante a aprovação em assembléia de acionistas representando no mínimo 66% do capital votante da sociedade, conforme requer o acordo de acionistas da N. (Cláusula Segunda, 2.1)?

  5. Admitida a arbitragem pleiteada, nos termos acima expostos, poderiam submeter-se ao procedimento arbitrai eventos passados ou somente situações presentes e futuras?

  6. O fato de ser instituída a arbitragem para a solução da controvérsia entre a companhia e seus acionistas implicaria em reconhecimento ou renúncia de qualquer direito, pelas partes signatárias do compromisso arbitrai?

    7.5 Para esclarecimento dos fatos acima sumariados, a Consulta é informada com os seguintes documentos: o estatuto social da T. C. P. S/A, o estatuto social da T. C. S/ A, o estatuto social da T. N. C. P. S/A, o estatuto social da A. C. S/A e o acordo de acionistas da N. S/A.

    1.6 Para os fins de sistematização da matéria societária a ser aqui enfocada, ana-lisar-se-á, inicialmente, os aspectos intrínsecos ao instituto da competência da sociedade e dos órgãos administrativos, no contexto da legislação aplicável, para, a seguir, abordar a problemática suscitada em cada quesito, que será respondido a final de cada tópico deste Parecer.

2. A competência da administração

2.1 A certos agrupamentos de indivíduos (sociedades) e a determinadas desti-nações patrimoniais (fundações), o Direito atribui personalidade e capacidade, equiparando as entidades abstratas assim geradas à própria pessoa humana, com aptidão para adquirir e exercer direitos e contrair obrigações. Enquanto, porém, a pessoa física encontra na sua capacidade a expressão plena de sua alteridade ou do seu poder de ação, com linhas de generalidade que lhe asseguram extensão ilimitada, as pessoas jurídicas ou morais, pela sua própria natureza, têm capacidade jurídica limitada, faltando-lhes a titularidade daqueles poderes que as transcendem, como os de família, de sucessão legítima e de outros inerentes à pessoa humana.

2.2 Com efeito, as pessoas jurídicas têm a sua capacidade restrita à órbita de sua atividade própria, tal como fixada nos atos constitutivos. As pessoas jurídicas são constituídas para cumprir uma determinada missão e, por conseguinte, dotadas de uma capacidade específica para cumpri-la. A essa capacidade especializada, ditada pela finalidade para a qual foram constituídas, dá-se o nome de "especialização estatutária" (spécialité légale ou statutaire, segundo a matriz francesa), correspondente continental do conceito de ultra vires socie-tatis, vigente no direito anglo-americano. Segundo essas noções, a pessoa jurídica é constituída em razão de uma determinada finalidade, e só na medida em que se relaciona com esse escopo é que o ato realizado em seu nome é a ela imputável.1

2.3 O objeto da entidade, expresso no contrato ou no estatuto, é assim entendido como definição da capacidade da pessoa jurídica. Ou seja, a atividade das sociedades e das fundações não pode ultrapassar os limites do fim que lhe foi assinado convencionalmente no ato constitutivo, de sorte que os atos estranhos ao objeto da entidade, realizados ao arrepio dos limites dentro dos quais têm elas a capacidade de agir,

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em princípio não as vinculam a terceiros. Não são necessariamente inválidos, mas inábeis para vincular a entidade representada, constituindo responsabilidade pessoal dos representantes infiéis.2

2.4 Não basta, porém, que alguns indivíduos se reunam, ou que se dê uma determinada destinação a um conjunto de bens, para que tenha nascimento a personalidade jurídica da entidade: é preciso que, além do fato externo da aglomeração das partes, ou da dotação dos bens, se estabeleça uma vinculação jurídica duradoura, que lhe imprima unidade orgânica, de tal sorte que a vontade da entidade se destaque das vontades individuais dos participantes, ou do instituidor. Em certas formas associativas simples, como, por exemplo, nas sociedades mercantis de pessoas, e nas fundações, essa organização das relações internas da entidade, é deixada à livre decisão dos seus fundadores. Nas sociedades anônimas, porém, o legislador impôs uma distribuição de poderes através de centros volitivos determinados.

2.5 A esses centros de poderes na sociedade anônima dá-se o nome de órgãos sociais. Assim, a sociedade anônima se organiza mediante a discriminação de poderes-funções, atribuindo-os a órgãos próprios, insuprimíveis e inconfundíveis: o órgão de deliberação, que expressa internamente a vontade da sociedade; o órgão de gestão, que executa a vontade social e gere a empresa, representando-a externamente; e o órgão sindicante, que fiscaliza a fiel execução da vontade social. Respectivamente, assembléia geral, administração e conselho fiscal. A liberdade negociai dos particulares, na organização de uma companhia, é, pois, restrita ao respeito devido a essa estrutura básica.

2.6 Reproduziu-se, destarte, no direito privado a mesma problemática da divisão de Poderes do direito constitucional,

2.7 No entanto, cabe observar que se cada um desses órgãos básicos é dotado de poder próprio e exclusivo, eles não se posicionam no mesmo nível, organizándose, em verdade, de forma hierárquica. Com efeito, no modelo legal, a assembléia geral é colocada como o órgão supremo, a quem é atribuído "poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia" (art. 121). Comparato lembra aqui a distinção entre potestas e imperium, desenvolvida na experiência jurídica romana: a primeira designaria um poder especializado e, a segunda, um poder geral, próprio da assembléia de acionistas.4

2.8 Todos esses órgãos, porém, inclusive a assembléia que detêm referida soberania, são dotados de poderes limitados à esfera de competência do próprio organismo societário, de que fazem parte, e que é definida pelo objeto social fixado no estatuto. O objeto social estatutário delimita, assim, o raio de atuação da entidade, ou seja, a sua capacidade (capacity) e, conseqüentemente, a autoridade ou o poder (authority) dos órgãos que a compõem. Daí a importância da definição precisa e completa do objeto social (ou seja, da atividade empresarial a que a sociedade se dispõe a desenvolver), constante do estatuto da companhia, por determinação imperativa da lei (Lei 6.404, art. 2a, § 2º).

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2.9 À assembléia, entendida como órgão eminente da sociedade, é, de fato, atribuída poderes para decidir todos os negocios da sociedade, mas, como vimos, desde que estes se atenham ao objeto estatutário, como o enfatiza o art. 121, acima comentado. Dessa forma, ainda que a lei admita tenha a assembléia competência para a reforma do estatuto (Lei 6.404, art. 122,1), com poderes para promover inclusive a "mudança do objeto da companhia" (idem, art. 136, VI), não a libera, nas suas decisões, da limitação imposta pelo objeto da companhia, não lhe sendo permitida, por exemplo, a ratificação de atos estranhos ao objeto social, pois essa ratificação constituiria uma alteração a pos te rio ri do estatuto, sem a observância das formalidades específicas impostas pela lei para as alterações do estatuto (idem, arts. 137, caput, e 57, § 2fl, a). Permanece, portanto, cogente, para todos os órgãos da companhia, inclusive para a assembléia, o dever de se ater ao objeto estatutário.5

2.10 A importância do objeto social para delimitação da competência da sociedade e, por conseqüência, dos poderes dos administradores e dos...

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