A Arbitragem no Brasil - Evolução Histórica e Conceitual

AutorJosé Augusto Delgado
CargoMinistro do Superior Tribunal de Justiça Professor de Direito Público (Administrativo, Tributário e Processual Civil)
Páginas5-14

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1. Introdução

A análise da evolução histórica e conceitual da arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro há de ser antecedida com a visão da sua prática pelos povos antigos.

Alguns doutrinadores afirmam ser inútil procurar compreender-se a arbitragem nas civilizações do passado, em face das diferentes configurações que ela assumia, como via de solução de conflitos.

Sálvio de Figueiredo Teixeira, em perfeita síntese, relata o resultado de aprofundado estudo que realizou sobre a presença da arbitragem em várias ordens jurídicas dos povos antigos. Eis a sua manifestação:

"Historicamente, a arbitragem se evidenciava nas duas formas do processo romano agrupadas na ordo judiciorum privatorum: o processo das legis actiones e o processo per formulas. Em ambas as espécies, que vão desde as origens históricas de Roma, sob a Realeza (754 a.C.) ao surgimento da cognitio extraordinária sob Diocleciano (século III d.C.), o mesmo esquema procedimental arrimava o processo romano: a figura do pretor, preparando a ação, primeiro mediante o enquadramento na ação da lei e, depois, acrescentando a elaboração da fórmula, como se vê na exemplificação de Gaio, e, em seguida, o julgamento por um iudex ou arbiter, que não integrava o corpo funcional romano, mas era simples particular idôneo, incumbido de julgar, como ocorreu com Quintiliano, gramático de profissão e inúmeras vezes nomeado arbiter, tanto que veio a contar, em obra clássica, as experiências do ofício.

Esse arbitramento clássico veio a perder força na medida em que o Estado romano se publicizava, instaurando a ditadura e depois assumindo, por longos anos, poder absoluto, em nova relação de forças na concentração do poder, que os romanos não mais abandonaram até o fim do Império.

Nesse novo Estado romano, passa a atividade de composição da lide a ser completamente estatal. Suprime-se o iudex ou arbiter, e as fases in jure e apud judicem se enfeixam nas mãos do pretor, como detentor da auctoritas concedida do Imperador - donde a caracterização da cognitio como extraordinária, isto é, julgamento, pelo Imperador, por intermédio do pretor, em caráter extraordinário.

Foi nesse contexto, como visto, que surgiu a figura do juiz como órgão estatal. E com ela a jurisdição em sua feição clássica, poder-dever de dizer o Direito na solução dos litígios.

A arbitragem, que em Roma se apresentava em sua modalidade obrigatória, antecedeu, assim, à própria solução estatal jurisdicionalizada.

Com as naturais vicissitudes e variações históricas, veio ela também a decair importância no Direito europeu-continental, ou civil-law, persistindo forte a técnica de composição puramente estatal dos conflitos. Mas subsistiu como técnica, em razoável uso, paralelamente à negociação e à mediação, no âmbito do common law, o direito anglo-americano - marcado por profunda influência liberal, fincada no empirismo de Francis Bacon e de juristas do porte de Blackstone, Madison, Marshall, Holmes e Cardozo, aos quais jamais seria infensa a utilização de válida forma de solução de litígios, como o arbitramento -, até chegar aos tempos contemporâneos, em que retoma força e passa a ser verdadeiro respiradouro da jurisdição estatal, como observou com a acuidade de sempre Sidnei Agostinho Beneti, para quem a arbitragem vem sendo largamente utilizada no âmbito do comércio internacional, que dela atualmente não poderia prescindir 'em sua modalidade contratual, à vista da inexistência de jurisdição estatal que sobrepaire sobre as relações internacionais', experimentandose desenvolvimento extraordinário do instituto no âmbito interno de cada país.

Nesse sentido as experiências de utilização da arbitragem nos Estados Unidos, bem relatadas em coletânea de estudos especialmente a ela destinados pelo The Justice System Journal (1991, vol. 14, pág. 2), a exibir as várias formas de arbitramento, inclusive as denominadas Court-Annexed Arbitration e Court Ordered Arbitration, vale dizer, com determinação judicial de uso do arbitramento, realizada pela própria Corte, em substituição ao próprio julgamento. Daí, o rental judge ('juiz de aluguel'), a mostrar, segundo o relato norte-americano, o acerto das partes em torno da submissão do conflito ao julgamento de cidadão contratualmente investido na função de dirimir-lhes o conflito - atuando, ao que se noticia, nesses casos, profissionais respeitáveis do Direito, entre os quais advogados, promotores e juízes aposentados.

Está-se, no âmbito do Direito anglo-americano, no campo da ADR (Alternative Dispute Resolution), isto é, mecanismos paraestatais de solução de controvérsias jurídicas ou, se se quiser o encaixe na pura doutrina processual de filiação peninsular, mecanismos paraestatais de composição da lide, já se falando até mesmo na substituição da expressão 'meios alternativos de soluções de conflitos' por 'meios propícios a soluções de conflitos'.

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Pedro A. Batista Martins, em exame também valioso sobre a prática da arbitragem no passado pelos povos antigos, afirma que ela foi "utilizada pelos povos desde a mais remota antigüidade, quando a desconfiança recíproca e as diferenças de raça e religião tornavam precárias as relações entre os povos."

Do estudo que efetuou sobre a evolução histórica da arbitragem, firmou a convicção de que a arbitragem é um instituto que existiu e produziu efeitos mesmo antes que surgisse o legislador e o juiz estatal.

O referido autor identifica a presença da arbitragem, nos séculos pretéritos:

  1. na Grécia antiga, em face de ter constatado que o "tratado firmado entre Espanha e Atenas, em 455 a. C., já continha cláusula compromissória, o que evidencia a utilização desse instituto por aquele povo e, também, a sua eficácia como meio de solução pacífica dos conflitos de interesse";

  2. na Roma antiga, em razão do sistema adotado de se estimular o iudicium privatum-judez (lista de nomes de cidadãos idôneos), cujo objetivo era de solucionar, em campo não judicial, os litígios entre os cidadãos;

  3. nas relações comerciais assumidas durante o século XI, pela posição dos comerciantes em resolver os seus conflitos fora dos tribunais, com base nos usos e nos costumes.

O autor observa, ainda, que a arbitragem não foi muito considerada durante o transcorrer dos séculos XVI e XVII, tendo, porém, retomado o seu prestígio no século XVIII, para, finalmente, ter sofrido restrições no curso do século XIX, por haver assumido, em decorrência das reformas legais instituídas por Napoleão, forma burocratizada exagerada.

Pedro A. Batista Martins, concluindo essa parte dos seus estudos sobre o tema, afirma:

"Contudo, já no final do século XIX o interesse pela arbitragem é renovado, e sua utilização plenamente revigorada no século XX, com a ratificação de tratados sobre a matéria e a inserção do instituto na grande maioria dos sistemas jurídicos nacionais."

Na era contemporânea, a arbitragem é instituto utilizado, com êxito, em vários países.

Na Argentina, em decorrência da vigência da Lei nº 24.573, há o estabelecimento da exigência da mediação, em caráter obrigatório, antes do ingresso de qualquer ação em sede civil ou comercial.

Saliente-se que o Código Processual Civil e Comercial da Argentina, em seus arts. 736 a 773, e os Códigos de Procedimentos Civil e Comercial de cada uma das Províncias Argentinas prevêem a arbitragem.

No Paraguai, a arbitragem está inserida no seu Código de Processo Civil, por via dos arts. 774 a 835.

O Código Geral de Processo da República Oriental do Uruguai regula a arbitragem nos arts. 472 a 507.

A arbitragem, nos EE.UU., tem expansão de longo alcance.

José Maria Rossine Garcez, ao analisar as regras de arbitragem da American Arbitration Association - AAA, escreveu (pág. 170, ob. citada, no rodapé):

"A prática da arbitragem se expandiu invulgarmente nos Estados Unidos graças ao trabalho que desenvolve naquele país a American Arbitration Association - AAA, que conta com um grupo de mais de 57.000 árbitros e 35 sedes físicas que oferecem a logística adequada para o desenvolvimento dos procedimentos arbitrais em todos os estados norte-americanos. A AAA é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que oferece serviços ao público na administração de arbitragens, em que têm sido predominantes os casos laborais e de responsabilidade civil, além das disputas em questões internacionais de natureza comercial.

As regras de arbitragem internacional da AAA foram revisadas e se encontram em vigor desde 1º de março de 1992, dispondo, em 37 artigos, sobre os procedimentos a serem adotados nessas arbitragens.

No preâmbulo, o Regulamento recomenda que as partes que queiram submeter suas controvérsias às regras administradas pela AAA introduzam em seus contratos uma cláusula cuja redação indique, simplesmente, que se aplicam à solução controvérsias deles originadas as International Arbitration Rules of the America Arbitration Association. As partes, segundo sugere a AAA, podem ainda acrescentar: a) o número de árbitros que atuarão (um a três); b) o local onde a arbitragem se realizará (cidade e/ ou país); c) a língua em que a arbitragem será expressada.

Sob as regras da AAA as partes acham-se livres para adotar qualquer acordo mutuamente aceitável para a indicação futura dos árbitros ou podem, desde logo, nomear tais árbitros. Podem as partes indicar também que a controvérsia será resolvida por um árbitro único ou por um tribunal de três ou mais árbitros, sempre em número ímpar. Elas também podem preferir que a AAA designe os árbitros, ou que cada parte escolha um árbitro e que estes, entre si, nomeiem um terceiro, verificando a AAA se o tribunal arbitral assim formado está conforme as regras aplicáveis. Podem também as partes ajustar que a AAA submeta a elas uma lista de árbitros, da qual elas retirarão os nomes que lhes pareçam inaceitáveis, ou...

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