Da arbitragem no Japão e na China

AutorJosé Cretella Neto
Páginas46-60

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Introdução - Por que estudar a arbitragem no Japão e na China

Embora a arbitragem venha sendo objeto de aprofundados estudos académicos já há décadas, uma vez que constitui, atualmente, o mecanismo preferencial para a solução de litígios oriundos de contratos internacionais, e praticamente todos os países do mundo aumentaram suas relações Page 47 comerciais com os demais países no mesmo período, a arbitragem no Japão e na China não tem recebido a devida atenção da doutrina. 1

Uma série de razões justifica que nos debrucemos sobre o desenvolvimento da arbitragem nesses dois países e não nos limitemos ao estudo do instituto somente nos EUA, na Europa e, em menor escala, na América Latina, tal como tem sido feito.

Em primeiro lugar, o Japão, por anos consecutivos, foi o primeiro ou o segundo exportador de mercadorias no comércio mundial e a China, atualmente a segunda economia do Mundo, deverá ultrapassar a dos EUA em menos de duas décadas e continuar a exportar e a importar crescentes volumes de produtos e serviços.

Em segundo lugar, em decorrência justamente do mencionado incremento do comércio internacional, o número de contratos internacionais com empresas desses países também aumentou em número e em volumes transacionados.

Em terceiro lugar, o instituto da arbitragem reforçou-se nesses dois países, tendo sido objeto de novas leis e aprimoramento das instituições dedicadas à solução de controvérsias comerciais. Em especial, a China, economia que registra, há mais de 20 anos, impressionante crescimento, com taxas anuais de dois dígitos, dedicou-se a aprimorar a arbitragem, pois a necessidade de aumentar a segurança jurídica de suas transções comerciais foi sempre objeto de pressões da comunidade internacional.

Outro aspecto que merece ser ressaltado é o de que a execução de laudos arbitrais sofre cada vez menos resistência dos Poderes Judiciários internos, o que confere maior segurança jurídica aos parceiros comerciais de outras regiões que se envolvem em transações com Japão e China.

O Brasil tem no Japão um tradicional parceiro comercial, que investe em nosso país há décadas, em especial nos setores siderúrgico, da construção naval, de veículos e dos eletroeletrônicos.

Além do Japão, registra-se notável estreitamento das relações comerciais com a China, em especial a partir de meados dos anos 1990, tornando esse país um destinatário importante de nossos produtos primários - minério de ferro, soja, carnes -, bem como de produtos manufaturados, como aviões. Já o Brasil adquire variadíssima gama de produtos de consumo fabricados na China, por empresas transnacionais que deslocaram linhas de produção para aquele país, bem como por empresas chinesas, que já adquiriram a necessária expertise para fabricar produtos de qualidade.

Por derradeiro, a China parece inclinada a investir fortemente no Brasil em determinados setores, como a mineração, premida por uma necessidade crescente e quase insaciável de matérias-primas para manter suas inigualáveis taxas de crescimento econômico.

É precisamente a crescente presença brasileira nas pautas comerciais de e para o Japão e para a China que nos leva a elaborar o presente estudo, em especial porque a doutrina brasileira, com raríssimas exceções, ainda não o fez.

1 Arbitragem no Japão

Discussões acadêmicas sobre o Direito japonês, tanto no Japão quanto em países ocidentais, sempre enfatizaram o baixo grau de litigiosidade da sociedade nipônica, o que é facilmente percebido pelo número reduzido de ações cíveis no país, quando comparado com o de outras nações industrializadas.

Duas correntes explicam esse fenómeno: de um lado, os "institucionalistas" (ou objetivistas), que entendem que as dificuldades do sistema judicial japonês criam entraves à sua mais ampla utilização; e os "culturalistas" (ou subjetivistas), os quais consideram que, mesmo que esses obstáculos fossem removidos, a frequência com que os japoneses levam seus litígios à solução judicial permaneceria baixa, pois a sociedade, em geral, prefere métodos não-confrontacionais de solução de controvérsias 2.

Essa baixa utilização de métodos confrontacionais de solução de litígios resulta igualmente em menor recurso à arbitragem pela comunidade de negócios japonesa, ainda que, como é sabido, esse método consista em procedimento bastante menos formal do que o imposto pelo sistema judicial estatal. Page 48

A corrente culturalista prevaleceu até o final dos anos 1970, liderada pelo mais famoso teórico japonês da época, Takeyoshi Kawashima. Em artigo que refletiu bem a opinião prevalescente no período, os autores afirmaram: "disputes are regarded [no Japão] as abnormal disruptions of the harmony of life, not to be foreseen in human affairs, human affairs being secured by bonds of love and benevolence" 3. Vê-se, portanto, nessa posição, a ênfase no consenso na conciliação e nas negociações em geral, com vistas a manter a harmonia social 4.

Os institucionalistas adotaram a visão oposta, entendendo que a baixa frequência de litígios deriva de elementos completamente exteriores aos indivíduos. Essa corrente foi inaugurada em 1978, com um artigo clássico da autoria de John Haley 5, o qual, sem negar a cultura de resolução de litígios com base no consenso, identificou fatores que dificultam ao extremo o acesso à justiça estatal: baixo número de juízes 6, limitados recursos de que dispõem os tribunais e a própria duração de processos judiciais no Japão, todos fatores que desencorajam a busca por soluções de confronto.

O autor concluiu que o custo dos processos no Japão é proibitivo, demanda exagerado tempo e resulta em decisões que deixam ambas as partes insatisfeitas. Comenta que um americano, confrontado com essas dificuldades materiais, provavelmente buscaria outros meios para resolver seus litígios. Em outras palavras, aspectos psicológicos dariam lugar a obstáculos de natureza prática, material 7.

Essa corrente ganhou adeptos, como Mark Ramseyer, que ofereceu, em artigo 8, o seguinte argumento: uma vez que o sistema judicial conferia grande ênfase à coerência e à uniformidade dos julgados, não havia necessidade de recorrer-se à justiça para solucionar a maioria dos casos, pois já se sabia de antemão o resultado.

Deu, como exemplo, as indenizações por acidentes de trânsito, que passaram a ser tarifadas segundo uma fórmula desenvolvida por iniciativa do Poder Judiciário, de forma que os pagamentos devidos seguiam uma tabela predeterminada. Essa previsibilidade oferecia pouco incentivo ao litígio judicial e provocava a celebração de acordos extrajudiciais em benefício de ambas as partes.

Uma terceira corrente, autointitulada de "sociocultural", considera que as duas vertentes anteriormente mencionadas explicam, cada qual apenas em parte, o fenômeno, mas deixam de lado o que os defensores dessa última posição consideram a verdadeira explicação para a baixa taxa de litígios, que é o reconhecimento de que existe uma profunda dicotomia entre as interações socioeconômicas japonesas e o Direito japonês.

Devido a essa dicotomia, embora o sistema judicial possa resolver litígios de forma objetiva, chegando a resultados concretos, as soluções não conseguem "resolver" os litígios. Daí concluírem que, enquanto existir essa discordância, baixas taxas de litigiosidade continuarão a ser registradas. Na realidade, essa terceira corrente não deixa de ser uma variante da corrente culturalista, e a expressão "sociocultural" foi adotada pelo fato de que prefere colocar em relevo as relações sociais, e não enveredar pelas características psicológicas dos indivíduos que formam a sociedade japonesa 9.

Ocorre que nenhum desses doutrinadores procurou explicar a igualmente reduzida procura pela arbitragem 10, procedimento já previsto na Horei de 1890 (Lei nº 29), pois, se fosse meramente uma questão de obstáculos formais ou institucionais, um procedimento mais flexível permitiria superá-los. Quanto à questão de que a sociedade japonesa não vê com bons olhos pessoas que não se compõem amigavelmente a arbitragem, procedimento sigiloso, não atrairia eventuais olhares de reprovação social 11.

Alguns críticos atribuem o insucesso da arbitragem ao fato de que a Lei de 1890 seria inadequada, argumento insustentável, pois diversas decisões judiciais envolvendo arbitragem foram proferidas por tribunais nipônicos, as quais, simultaneamente, tanto reforçavam o instituto quanto procuravam aproximar a prática arbitral japonesa de padrões internacionais 12.

A Suprema Corte do país, por exemplo, dando interpretação de pleno apoio à Lei de 1890, julgou, já em 1918 13, que uma sentença arbitral deveria ser tratada como tendo a mesma força jurídica de uma sentença judicial. E, embora a Constituição japonesa do pós-guerra confira a qualquer pessoa o direito de ação 14, vários tribunais japoneses de segunda instância, como a Suprema Corte de Osaka, uma das oito mais importantes do país, já julgaram que um acordo de arbitragem não viola esse direito 15.

Um importante julgado da Suprema Corte, de 1975, acolheu a doutrina da separação da cláusula arbitral da validade do contrato 16, pela qual uma cláusula arbitral pode ser executada ainda que o contrato que a incluía já tenha terminado ou sua validade seja questionada. Page 49

O Direito japonês consagra o direito de as partes indicarem a lei que governará sua relação jurídica, embora o moderno diploma legal de Direito Internacional Privado, assim como a Horei de 1898, não mencionem explicitamente arbitragem, pois a lei usa apenas a expressão "ato jurídico" (por ex., nos arts. 7º, 9º, 15 e 22). No entanto, os tribunais japoneses entendem que a regra se aplica também aos contratos e à arbitragem 17.

Pelo menos em relação a um aspecto, o acolhimento da arbitragem pelos tribunais do Japão supera o nível de...

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