A arbitragem nos contratos de concessão

Autor1.Felippe Borring Rocha - 2.Juliana Furtado Cardoso de Moraes
Cargo1.Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando em Direito. Mestre em Direito. Professor de graduação em Direito na Universidade Estácio de Sá. Professor de pós-graduação em Direito na Universidade Estácio de Sá, na Escola da Magistratura
Páginas109-122

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Introdução

A necessidade de atendimento mais eficaz do serviço público, notadamente em atividades que envolvem investimentos de grande monta, fez com que o Estado buscasse cada vez mais a cooperação com as empresas privadas, ou consórcio de empresas,Page 110navionais ou estrangeiras, através de contratos administrativos. Para tanto, foram promulgadas as Leis 8.666/93, 8.987/95 e 11.079/2004, regulamentando, respectivamente, os contratos administrativos, a concessão de serviço público e as parcerias públicoprivadas.

Ocorre que nestes diplomas legais há a determinação de que a Administração deva buscar, sempre que possível, a solução amigável dos conflitos de interesse com a concessionária. Por outro lado, na Lei de Arbitragem, existe restrição quanto à sua utilização quando se tratar de direitos indisponíveis. Assim, instaurou-se uma polêmica na doutrina e na jurisprudência, no sentido de se questionar sobre a capacidade do Estado participar de uma arbitragem, diante da ocorrência de um conflito com uma concessionária. Eis o ponto central do presente texto.

Antes de firmar uma posição sobre o tema, entretanto, é necessário contextualizá-lo dentro do ideário do acesso à Justiça.

1. O Acesso à Justiça

O ordenamento jurídico de cada Estado é fortemente marcado pelas raízes culturais de seu povo e dos processos históricos pelos quais passaram. Por isso, nos Estados que tiveram influencia substancial dos povos latinos é comum verificar, nos seus sistemas jurídicos, uma forte intervenção nas relações sociais. Essa presença, que oscilou ao longo do tempo, teve seu apogeu nos períodos que circunscreveram as duas grandes guerras, especialmente, no continente Europeu, onde as opções políticas vigentes criaram um terreno propício ao intervencionismo estatal.

Na segunda metade do século passado, no entanto, teve início um processo gradativo de alteração da concepção do papel que o Estado deve desempenhar dentro da sociedade. Esse movimento foi impulsionando não apenas novas posturas políticas que foram adotadas, mas principalmente, pelas novas estruturas dinâmicas de relacionamento que se instauraram no mundo e que podem ser identificadas pelo rótulo genérico intitulado de globalização.1 Com efeito, a formação de blocos econômicos, o incremento naPage 111velocidade das comunicações e do comércio, o deslocamento de pessoas e o avanço tecnológico fizeram com que ao Estado e o próprio Direito tivessem que passar por profundas transformações.

Deste modo, tornou-se imperioso, para que o Estado pudesse preservar a sua autoridade, a adoção de mecanismos mais céleres e eficazes de atendimento dos anseios sociais. Dentre as medidas que foram buscadas para solucionar esta crise epistemológica, merece destaque a vertente teórica que se dedicou a estudar os mecanismos de otimização do acesso à Justiça.

Na realidade, desde os primórdios da civilização é possível identificar movimentos tendentes a aproximar a população das normas que devem recair suas condutas em sociedade. Os primeiros códigos estruturados, como o de Hammurabi e o de Manu, serviram, a seu tempo, para tal propósito. Mas foi ao longo do século XX que este movimento ganhou força como instrumento de disciplina e participação social, voltado a construir o que Kazuo Watanabe identificou como ordem jurídica justa.2 A base estrutural moderna deste movimento foi pesquisa coordenada pelo professor Mauro Cappelletti, nominado de Projeto Florença de acesso á Justiça.3

No decorrer dos estudos, concluídos nos EUA com a colaboração de diversos cientistas, Cappelletti4 organizou em três blocos os desafios que o direito deveria enfrentar e superar para poder atingir os fins sociais. Para cada grupo foi concebida uma onda renovatória com o objetivo de superar estes obstáculos. A primeira onda renovatória do Direito centrou suas atenções na superação dos obstáculos econômicos e financeiros para o acesso a justiça. Com efeito, de nada adiantaria construir todo um arcabouço jurídico adequado à tutela dos direitos e garantias fundamentais se o seu exercício tivesse que ficar submetido as condições econômicas de seus titulares. Num primeiro momento há implementação de isenção de taxas e custas para deflagração da demanda em juízo. Num segundo plano, Cappelletti5 defendeu a liberação do pagamento de honorários advocatícios para quem não tivesse recursos para custeá-los. Tal se daria ou pelo sistemaPage 112de advocacia pública ou pelo sistema judicare, onde o advogado privado defende a pessoa juridicamente necessitada e depois pode cobrar a remuneração do governo.

O Brasil é reconhecido internacionalmente pelo seu desempenho no enfrentamento das barreiras econômicas ao acesso á justiça, visto que foi um dos primeiros países do mundo a ter uma lei nacional de gratuidade, qual seja Lei 1.060/506.

Importante ressaltar que o Brasil também se destacou com a instituição dos Juizados Especiais Cíveis, regido pela Lei 9.099/957, que é um órgão jurisdicional cuja atuação, num primeiro momento, é feita sem custos para as partes. Ademais, o País também foi pioneiro na implementação de órgãos voltados ao atendimento de partes em condições especiais, tais como o Idoso (Lei 10.741/03), a criança e o adolescente (Lei nº 8.069/90), dentre outras, e das populações carentes. De fato, as Defensorias Públicas desempenharam papel fundamental, não apenas permitindo o acesso desonerado aos tribunais, mas também o acesso á informação jurídica e á solução compositiva de conflitos (Lei Complementar 80/94).

A segunda onda renovatória foi marcada pela implementação da tutela dos interesses e direitos coletivos “lato sensu”, representando, de um lado, a ruptura com os modelos liberais-individualistas que estruturaram os ordenamentos jurídicos construídos após o período das Revoluções Burguesas, e, por outro lado, a adequação da tutela jurisdicional à nova realidade social, dominada pelos conflitos de massa, fortemente vinculadas aos contornos políticos, econômicos e sociais vigentes. Neste seguimento, Cappelletti8 sustentou a criação de ações especificamente voltadas a atender os interesses coletivos, titularizadas por legitimados extraordinários e com eficácia para os outros, que não apenas as partes do processo (erga omnes).

Mais uma vez, o Brasil foi saudado como um dos mais bem sucedidos precursores de tais medidas. Com efeito, o país dispõe hoje de um invejável arsenal de ações de cunho coletivo9, bem como de amplo rol de legitimados extraordinários, donde se destaca o Ministério Público, a Defensoria Pública e as associações civis.10 O BrasilPage 113caminha, ainda, para um novo patamar jurídico, com a futura adoção de um Código de Processo Coletivo,11 que permitirá unificar as regras sobre tais ações, hoje dispersas em vários diplomas, bem como superar as divergências decorrentes da falta de compatibilidade destes instrumentos com a ordenação processual civil em vigor, fundamentalmente individualista.

Por fim, a terceira onda renovatória do Direito apregoava a busca pela efetividade do direito, com a adoção de diversas posturas, tanto de ordem jurídica como sociológica. Assim, para que o Direito possa realizar seus fins sociais de maneira mais justa, equânime e razoável, é preciso difundir o conhecimento jurídico, aproximar a população do Poder Judiciário (não apenas em grau de sujeição, mas, principalmente, de cooperação e interação), descentralizar os órgãos jurisdicionais, criar procedimentos mais céleres e informais, incrementar o uso de tutelas diferenciadas, ressaltando o aspecto instrumental do processo e sua veiculação com o direito material, dentre outros.

Neste diapasão, Cappelletti12 atribui especial atenção aos chamados meios alternativos de solução dos litígios. São eles procedimentos extrajudiciais que têm como meta conduzir as partes a uma solução negociada da lide, sem a necessidade da intervenção Estatal.

De uma maneira geral, os meios auto-compositivos podem ser divididos em três grupos: conciliação, mediação e arbitragem. Nestes, verifica-se a presença de um terceiro desinteressado coordenando a composição. Na conciliação, o conciliador tem a missão primordial de incentivar os contetores de chegarem a uma solução. Na mediação, o mediador apresenta uma solução para ser a adotada pelos interessados.13 E na arbitragem, as partes escolhem árbitros para solucionar o conflito.

Neste diapasão, inegável reconhecer que os meios auto-compositivos estão intimamente ligados à efetividade do Direito, na medida em que evitam que o Estado-Juiz tenha que intervir em conflitos, nos quais as partes poderiam resolver autonomamente, se devidamente orientados. Neste sentido, verifica-se a aplicação da diretriz que GiuseppePage 114Tarzia nominou de subsidiariedade estatal, ou seja, a busca pela intervenção mínima do Estado-Juiz nas relações sociais.14

Por certo, se a Justiça concentrar sua atuação em lides onde sua presença é indispensável poderá lograr melhores resultados em seus julgamentos. Não obstante, com os meios alternativos de composição de conflitos evita-se, ou pelo menos se diminui, a carga de trabalho dos tribunais, além de promover uma solução mais adequada e legítima, fruto da vontade dos...

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