Arbitragem na concessão de serviços públicos. Arbitrabilidade objetiva. Confidencialidade ou publicidade processual?

AutorSelma M. Ferreira Lemes
Páginas148-163

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I - Introdução

Os novos paradigmas do direito administrativo

Abordar sobre o instituto jurídico da arbitragem nos contratos de concessão de serviços públicos passa, a cada dia, ser algo mais presente e irreversível no moderno direito administrativo brasileiro. As premissas atuais que orientam as contratações públicas, em especial as novas formas de parcerias entre o Estado e os particulares,1 estão a demonstrar a quebra de antigos paradigmas, verificados nos textos legais que disciplinam a concessão de serviços públicos (Leis 8.987, de 13.2.1995 e 9.074, de 7.7.1995), que instituíram as agências reguladoras, nas áreas de petróleo, comunicações, transportes etc.2

Em decorrência das peculiaridades presentes nas novas formas de parcerias firmadas entre a Administração e os particulares, notadamente o vulto e envergadura dos empreendimentos aos quais o Estado não pode dispensar a colaboração e o aporte de capital privado, procura-se flexibilizar a relação contratual, priorizando o equilí-

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brio de interesses das partes? Passa-se a dar maior relevo à igualdade de tratamento contratual, tal como no direito privado, sem com isso deixar de acatar as cláusulas exorbitantes, peculiares aos contratos administrativos. A luz desses novos paradigmas, escudados nos princípios jurídicos da igualdade, legalidade, boa-fé, justiça, lealdade contratual, do respeito aos compromissos recíprocos das partes etc., a Administração é conduzida a perfilhar novos caminhos que busquem a solução de controvérsias de modo mais rápido e eficaz para as divergências que envolvam direitos patrimoniais disponíveis nos contratos administrativos e que gravitam em torno das cláusulas econômicas e financeiras (equilíbrio econômico-financeiro). O escopo desta iniciativa é o de preservar e conciliar os interesses do concessionário e da Administração (e dos usuários dos serviços) relativos à boa, correta e justa governança da concessão outorgada, haja vista tratar-se de modalidade do contrato administrativo de colaboração.4

Referidas mudanças de rumo e de orientação também foram sentidas no direito administrativo comparado, tais como as verificadas na França, Espanha, Itália, Portugal etc. Nesses países, graças a estas novas formas de contratação, foi possível a realização de grandes obras, tais como, a construção de estradas, ampliações portuárias, serviços de saneamento básico etc, em que o parceiro privado efetua altos investimentos, recuperando-os posteriormente, com a exploração dos serviços prestados aos usuários. Esses contratos passaram a estabelecer novos conceitos jurídicos representados nos direitos e obrigações das partes, neles inseridos os institutos jurídicos da arbitragem, da mediação e da conciliação.

A guisa de ilustração mostra-se representativo o exemplo verificado com a construção do Túnel sob o Canal da Mancha, resultante de Acordo Internacional firmado em 1986, entre a Grã-Bretanha e a França que, entre outras avenças, redundou em contrato de concessão para exploração de serviços por particulares. Nesta negociação a arbitragem teve papel importante, pois as partes recorreram à arbitragem por várias vezes, para fixar as alterações imediatas no contrato exigidas no curso da obra, trans-

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ferindo para o final da execução as avaliações dos direitos e de veres das partes.5 Os árbitros foram autorizados pelas partes a conceder medidas cautelares, que impediram a paralisação das obras que, se ocor-rentes, encareceriam ou até inviabilizariam o empreendimento.6

A redescoberta da arbitragem no Direito Processual Civil na ótica da facilitação do acesso à Justiça e no Direito Internacional Privado com o incremento do comércio internacional

Ainda, nesta linha de balanço de final e início de novo século em que mutações são verificadas em todos os setores da sociedade e nas diversas ciências,7 há de ser observado que a arbitragem não passou incólume a essas transformações, sendo que podemos constatar duas dinâmicas distintas. A primeira, no âmbito do direito processual civil, enquanto passa a enaltecer que a prestação jurisdicional deve priorizar a efetividade e a informalidade no contexto das denominadas "ondas renovatórias do direito", apregoadas por Mauro Cappelletti, consubstanciadas, no ambiente doméstico, nas leis que disciplinaram os juizados especiais cíveis e criminais (Leis 9.099/1995 e 10.259/2001), na tutela antecipada e execução provisória (Leis 8.952/1994 e 10.44.4/2002), na lei do fax (Lei,9.800/ 1999) etc. É indubitável, portanto, que a Lei 9.307, de 23.9.1996, que deu novas fei- -ções ao instituto jurídico da arbitragem^ é fruto desta útil influência. Por sua vez a segunda, ocorreu no cenário mundial, em que a partir da década de 1950 a arbitragem voltou a ser prestigiada8 e, definitivamente

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impulsionada, na década de 1980 com a globalização da economia, em que os contratos internacionais com os mais variados objetos, valores e complexidades técnicas, quase que à unanimidade, elegem a arbitragem para solução de diferendos, principalmente por ser foro especializado e desvinculado do Estado, sendo os árbitros nomeados pelas partes que, além da independência e da imparcialidade, podem ser especializados na matéria objeto da arbitragem.

Após estas observações introdutórias que se mostram oportunas na análise legal, em que os métodos de interpretação histórico, lógico, sistemático e teleológico não são excludentes, mas se complementam,9 observamos, como acentua Francesco Ferrara que "(...) a ratio legis é uma força vívente móvel que anima a disposição, acom-panhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento; é como linfa que mantém sempre verde a planta da lei e faz brotar sempre novas flores e novos frutos".10

Assim, ao tratar da arbitragem nos contratos de concessão de serviços públicos dois temas defluem como inevitáveis frente às características e conceitos do direito arbitral e as peculiaridades presentes nos contratos administrativos. Destarte, o primeiro, refere-se ao âmbito de abrangência da arbitragem, que nos conduz a analisar a questão sob a ótica do conceito de arbitrabilidade objetiva (direitos patrimoniais disponíveis) e, o segundo, refere-se aos princípios da confidencialidade e sigilo, que estão presentes na arbitragem vis-à-vis a publicidade que deve pautar os atos da administração, conforme disposto no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

II - A arbitrabilidade objetiva

No Direito Arbitral o conceito de arbitrabilidade11 subdivide-se em arbitrabilidade subjetiva e objetiva. A primeira refere-se aos aspectos da capacidade para poder se submeter à arbitragem e, no direito público e administrativo, seja como pessoa jurídica de direito público (Estado e autarquias) ou de direito privado (sociedade de economia mista e empresa pública), o ente público e privado a possui.12 Por sua vez a arbitrabilidade objetiva refere-se ao objeto da matéria a ser submetida à arbitragem, ou seja, somente as questões refe-

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rentes a direitos patrimoniais disponíveis.13 Estes conceitos estão dispostos no art. Iº da Lei 9.307, de 23.9.1996, quando prescreve "As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis".

Importa, nesta oportunidade, analisar o conceito de arbitrabilidade objetiva, ou seja, quais as questões, na seara administrativa, em especial nos contratos de concessão de serviços públicos, que seriam consideradas como de direitos patrimoniais disponíveis, haja vista que no direito administrativo há matérias que são de direitos indisponíveis, em que o ente público age com poder de império, e outras, no campo do direito privado (poder de gestão), em que lhe é autorizado margem de negociação que não agrida, ou confute com o interesse público.14

Em elucidativa explanação Diogo de Figueiredo Moreira Neto salienta que o interesse público subdivide-se em interesse público primário e o secundário (ou derivado). O interesse público primário está relacionado com a sua relevância, considerando a segurança e o bem-estar da sociedade, sendo que o ordenamento jurídico os destaca, os define e compete ao Estado sa-tisfazê-lo sob regime próprio. Esses interesses estão fora do mercado, submetendo-se ao princípio da indisponibilidade absoluta. O interesse público secundário ou derivado tem natureza instrumental referindo-se às pessoas jurídicas que os administram e existem para que os interesses primários sejam satisfeitos, resolvendo-se em direitos patrimoniais ey por isso, tornam-se disponíveis (destacamos). Assim esclarece que, "(...) são disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão pa-: trimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou os seus delegados, dos meios instrumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado"15 (destaque no original).

Reportando-nos aos ensinamentos do jurista argentino Rafael Bielsa, precursor no estudo desta questão, anotamos que devemos distinguir os "atos administrativos de autoridade" e os "atos de simples gestão" (gestão patrimonial).

Assim, a sentença arbitrai nunca poderia versar sobre matéria de "poder" de autoridade e vigilância, mas poderia se manifestar sobre questões pactuadas. Destarte; indaga o mestre portenho, "qual é o princípio que se oporia a que o preço de um ser-

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viço prestado ao Estado ou o valor de uma indenização fossem fixados por árbitros?".16

O que se não pode confiar a árbitros são matérias ou...

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