A arbitragem nas sociedades de responsabilidade limitada

AutorPedro A. Batista Martins
Páginas58-74

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1. Introdução

A disposição sobre juízo arbitrai em sede societária é quase tão antiga quanto o registro do instituto em nosso direito positivo.

Conquanto permitida a arbitragem por previsão expressa na Constituição Política do Império, de 1824, essa via de solução alternativa foi introduzida no seio das sociedades através das edições, em 1850, dos Códigos Comercial (Lei 556, de 25 de junho) e de Processo Comercial (Decreto 737, de 25 de novembro).

Tínhamos, então, dois tipos de arbitragem: a obrigatória ou necessária e a voluntária.

Por força do contido no art. 294 do Código Comercial,1 o item 5 do seu art. 302 impunha aos sócios o dever de constar da escritura de constituição da sociedade a forma da nomeação dos árbitros para juizes das dúvidas sociais.

Era, assim, necessária a solução por arbitragem nas questões sociais existentes entre os sócios e nas relativas à liquidação da sociedade e à partilha de seu acervo.

Para disputas envolvendo essas matérias, impunha-se forçosamente decisão por juízo arbitrai. Era o que também determinava o Decreto 737, em seu Título VIII (art. 411, § 2a e ss.) ao dispor sobre as regras processuais do juízo arbitrai.

Todos os demais conflitos sociais, inclusive os resultantes da relação sócio/empresa, poderiam ser resolvidos por arbitragem, se assim dispusesse o contrato. Tratava-se de condição contratual facultativa a depender da manifestação da vontade legítima das partes.

Enquanto algumas questões sociais revertiam, compulsoriamente, para a solução arbitrai, outras tantas poderiam ser resolvidas nessa instância se assim acordassem livremente as partes.

A autonomia era o divisor de águas. A plenitude desse preceito imperava no juízo arbitrai voluntário, mas encontrava-se absolutamente renegado nas causas de competência necessária do juízo arbitrai.

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Enquanto este encerrava a vontade isolada do legislador, aquele se prendia ao interesse exclusivo das partes.

Mas esse sistema duplo de submissão de jurisdição, sabe-se lá o porquê, hão prosperou. Menos de duas décadas após a vigência do Código Comercial, foi abolido o juízo arbitrai obrigatório, por obra do então Ministro da Justiça, integrante do Gabinete dé Olinda, José Thomaz Nabuco de Araújo.

Êm 1866, a Lei 1.350, de autoria do pai de Joaquim Nabuco, retira do sistema legal brasileiro o juízo arbitrai necessário e, no ano seguinte- 1867 - o Decreto 3.900, também de iniciativa de José Thomaz, disciplina o juízo arbitrai facultativo (Waldecy Lucena, p. 95).

Por certo p mais pernicioso para o instituto da arbitragem foi o Decreto 3.900, cujo art. 92 acabou por impor à cláusula arbitrai o viés meramente compromissório, restando sua obrigatoriedade e eficácia, singelamente, no plano dá moral das partes.

Foi esse malfadado artigo o estopim da cultura da invalidade da cláusula com-promissória que se arraigou por décadas na doutrina e na jurisprudência nacional e que baniu a via arbitrai para a solução de qualquer controvérsia, inclusive das causas fundadas no direito societário.

2. As recentes propostas de Reforma das Leis das Sociedades de Responsabilidade Limitada

É justamente pela valia na adoção desse sistema de resolução de conflitos que os recentes estudos elaborados em forma de. anteprojeto e projeto de lei de modificação do sistema legal que congrega as sociedades de responsabilidade limitada (sociedades por quotas e anónimas) buscam reintro-duzir a arbitragem como saída célere e especializada às demandas surgidas entre sócios e entre estes e a sociedade.2

O dinamismo empresarial e a amplitude dos mercados aliados à criatividade e à agilidade de seus agentes - afora a alta competitividade - impõem solução rápida a questões que possam afetar, direta ou indiretamente, a sociedade empresarial.

A desavença sem reposta, ou a solução tardiamente posta, pode impiedo-samente alijar a empresa da concorrência.

Ademais, por força da sofisticação das relações societárias, a tecnologia jurídica que as cerca reclama grau aprimorado de especialização geralmente encontrado nos profissionais que usualmente convivem e se aprofundam no exame do tema.

Razoável, nesses casos, a escolha de árbitros com o perfil e a experiência que a matéria requer.

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Alie a esse dado a confidencialidade e teremos elemento catalisador da vitalidade da arbitragem em sede societária.

Mas, talvez, a vantagem das vantagens na adoção do juízo arbitrai nas questões internas que envolvem as pessoas empresariais e seus sócios seja a rapidez na solução dos problemas.

Sabe-se que um sem número de conflitos societários resultam do descum-primento de obrigações de fazer ou não-fazer.

Como todas as outras de natureza não societária, ditas obrigações (não raro voltadas à prestação de declaração de vontade) dependem, para sua efetividade, de uma sentença que lhe assegure, após o transcurso do processo de conhecimento, a chamada execução específica.

É o que impõe a sistemática processual, nos termos do art. 461 do CPC, dire-cionado ao processo de conhecimento, e dos arts. 632 e 642 do CPC, voltados à concretização de sentenças condenatórias emanadas de processos originados de descum-primento de obrigações de fazer ou não-fazer.

"Conceder tutela específica em sentença significa constituir ou desconstituir uma situação jurídica, segundo os desígnios do direito material, ou condenar o demandado ao fazer ou ao não-fazer a que estava obrigado (segundo os critérios acima: violação a proibições ou a comandos positivos)" (Dinamarco, p. 155).

Dado que a tutela de urgência, nesses casos, depende da relevância do fundamento da demanda e (cumulativamente) de receio justificado da ineficácia do provimento final, é mais comum a substituição da tutela pretendida - que normalmente é aquela objeto do pedido a ser confirmado em sentença - por outra de cunho instrumental que garanta, transversamente, a prestação jurisdicional ao final pretendida.

Destarte, excetuadas as oportunidades em que a obrigação contratada comporte, ab initio, execução específica, à solução do litígio societário antecederá um processo de conhecimento cuja efetividade do provimento final estará na capacidade de se obter tutela de urgência adequada à proteção do resultado prático almejado e que, regra geral, recai em medidas preventivas e laterais ao pleito principal, muitas delas envolvendo, aliás, a própria sociedade.

Mutatis mutandis, a mesma prática processual acaba por se impor à arbitragem; mas dela o juízo arbitrai não é de todo refém. A autonomia da vontade na escolha de regulamento de Câmara arbitrai ou a própria manufatura de regras procedimentais ad hoc - cláusula compromissória auto-regulada - proporcionam a oportunidade de mitigar a rigidez às vezes imposta pelo rito estatal. Não só isso: é a celeridade no julgamento arbitrai, implicitamente impulsionada pela especialização dos árbitros, amais valia na utilização desse mecanismo legal para a solução dos conflitos atinentes às relações societárias.

É esseplus que salta aos olhos daqueles que militam nessa área do direito a ponto de se introduzir nas propostas de modificação legislativa a opção pela solução arbitrai.

A bem da verdade, esses dispositivos constantes do Anteprojeto de Sociedades por Quotas e do Projeto de Modificação da Lei das Companhias (cf. nota 2) funcionam como um indutor na manifestação da vontade e não como uma norma autorizadora a validar a eficácia da convenção de arbitragem nos contratos de sociedade e instrumentos conexos.

Encerrando a matéria direitos de cunho patrimonial e disponível, regra geral, nada há que impeça os interessados de reverter à jurisdição arbitrai os atuais ou os futuros conflitos societários.

3. Arbitragem necessária: ainda um tabu

Se a arbitragem facultativa ainda hoje é contestada por alguns (poucos, com cer-

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teza), dada a estreita interpretação que buscam conferir ao art. 5°, XXXV, da Constituição Federal, o que se falar da arbitragem necessária? No mínimo, um absoluto tabu!

Nos termos literais da Constituição, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Essa regra foi suficiente per se a que oponentes da arbitragem voluntária encarassem a cláusula compromissória como de pouca valia legal. Continha a arbitragem, conquanto fundada na cláusula compromissória, vício irremediável de incons-titucionalidade. Modifique-se a Constituição ou enterrem de vez o juízo arbitrai, vaticinaram, por décadas perdidas, os pretensos escudeiros de nossa Carta Maior.

Nenhum dos dois presságios aconteceu. Destronadas e destruídas tais pretensões, restaram os argumentos ideológicos de oposição ao instituto.

Mas e a arbitragem necessária que sequer é debatida pelos arbitralistas ou, quando abordada, é enfrentada com surpresa como se tratasse de matéria exótica e de nenhuma possibilidade de penetração em nosso sistema legal? E com base naqueles mesmos argumentos, já mitigados, que novamente reagem, e com maior ênfase, aqueles que a renegam.

Essa rejeição a priori à arbitragem obrigatória sob certo aspecto é reflexo de uma reação autômata de um processo subliminar desencadeado na cultura jurídica e que nela se aloja há muito tempo sem que a massa formadora dessa rejeição tenha tido a oportunidade de refletir e repensar a questão, confrontando-a com o cenário passado e o atual.

Sinteticamente, a inserção constitucional do contido no art. 5°, XXXV, sucedeu ao período ditatorial de Vargas, onde tribunais à margem do Estado eram autorizados a proferir decisões sobre determinadas questões de direito.

Além de autorizados, eram esses tribunais os únicos que tinham competência para...

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