O procedimento arbitral e os direitos das partes a partir da eqüidade. a criação de precedentes procedimentais

AutorLuiz Fabião Guasque
Páginas243-256

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1. Introdução

Antes que o Estado avocasse a missão de fazer justiça, outras foram as maneiras de solucionar os litígios.

Se duas pessoas pretendiam o mesmo bem (material ou imaterial) , surgia entre elas um conflito de interesses. O modo primitivo de resolver os contrastes deve ter sido o emprego da força, solução puramente física que não enseja a paz e que , portanto, torna impossível a coexistência harmônica, a vida em consonância, a segurança, a tranqüilidade e a ordem. Por isso, o homem , muito cedo, recorreu a uma forma de solução transacional, econômica, utilitária, pelo menos para aqueles casos em que a generosidade superlativa de qualquer das partes em conflito não levasse a uma solução caritativa, consistente na renúncia, na disposição do próprio interesse. Qualquer desses três tipos de desenlace, físico, econômico ou moral, nem sempre assegura a justiça. Daí a necessidade de confiar a um terceiro, alguém de fora do conflito, a tarefa de dirimi-lo. Surgiu assim o arbitramento, e com ele a figura do árbitro (arbiter).

Por vezes, ao se formar a relação jurídica, antes, pois , de qualquer litígio , as partes incumbiam , também , a outrem , da função de completá-lo, como por exemplo, no contrato de compra e venda em que a fixação do preço era deixada ao arbítrio alheio. A figura que então aparecia era a do arbitrador (arbitrator).

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O arbitramento, que já figurava nas Ordenações Filipinas, no Livro III, títi. XVI (Dos Juízes e árbitros) e Tít. XVII (Dos arbitradores), aparecia, também no Código Civil de 1916, art. 1.037 e segs. e no Código de Processo Civil, arts. 1.072 e segs. (arbiter) e no mesmo Código Civil, art. 1.123 e ainda no Código de Processo Civil, em matéria de liquidação de sentença (art. 606) (arbitrador).

A lei 9.307 de 23 de dezembro de 1996, trouxe nova regulação para a atividade arbitral, estabelecendo normas gerais a serem seguidas nesta espécie de composição de conflitos, mas deixando ao prudente arbítrio dos árbitros, todas as questões procedimentais da relação jurídica arbitral, decorrentes de atos, fatos e negócios jurídicos, que venham a ocorrer no seu curso.

Os tribunais arbitrais, nas hipóteses específicas dos interesses conflituosos das partes no procedimento, não julgam secundum legem, mas secundum aequitatem, posto que, no caso, a lei não existe, e também, não se pode recorrer aos preceitos do Código de Processo Civil, para integrar por analogia seus comandos , pois as relações têm natureza diversa, sendo a primeira de direito privado (coordenação) e a segunda de direito público (subordinação) , o que inviabiliza a aplicabilidade do princípio: ubi eadem ratio ibi eadem ius (onde há a mesma razão de decidir, deve ser aplicado o mesmo preceito).

O árbitro tem que decidir, não de acordo com a lei, mas em consonância com as aspirações e ideais jurídicos, em outras palavras: secundum ius fieri, devendo haurir o direito nas mesmas fontes materiais em que o encontra o legislador.

Desta forma, tem o árbitro, freqüentemente, na relação jurídica estabelecida pelas partes, concessão de poder discricionário, o que lhe aproxima da função administrativa.

2. Os standarts do juízo arbitral

Afora isso, o árbitro leva em conta certos padrões flexíveis, baseados mais propriamente no razoável do que no estritamente justo. Em lugar de tipos definidos, de fórmulas rígidas, como os contidos na lei, os standarts apresentam moldes elásticos, dentro dos quais os fatos podem caber sem se deformar e sem mutilações. Assim, o árbitroPage 245avalia os comportamentos tendo em consideração os padrões de lealdade, consciência ética, prudência, zelo e assim por diante.

Há mais de um século, iniciou-se na Alemanha, um “movimento” (Bewegung) em favor da maior liberdade do juiz na aplicação do Direito e na criação dele1.Em maior ou menor escala essa atividade criativa dos juízes, essa jurisprudência construtiva sempre existiu. Com o Pretor, ela ajudou a erguer o monumento do Direito Romano. O Lord Chancellor, na Inglaterra, com ela completou o Common Law. E até nos países em que o juiz está mais agrilhoado à lei, ela consegue impor-se, travestida de interpretação do texto legal.

Ainda aqui , o drama da conciliação entre a segurança e a justiça: a primeira coloca o juiz na camisa de força das normas legais; a outra exige que se lhe afrouxem os laços para que ele possa fazer obra mais perfeita, como de regra, ocorre no procedimento arbitral.

3. As fontes do Direito e o procedimento arbitral

A primeira tarefa de quem fala em fonte do Direito é a de assentar bem em que sentido essa expressão deve ser usada. Com razão afirma Legaz y Lacambra2, que o problema das fontes do Direito é complexo exatamente porque essa expressão equívoca compreende sentidos diversos, cada um dos quais suscita uma questão diferente. Em seguida mostra nada menos de sete significados respectivamente correspondentes a outros tantos distintos problemas.

Convém no entanto, advertir, que vários deles não são jurídicos. Assim,não é jurídico, mas histórico, o problema do conhecimento das fontes históricas do Direito, v.g., documentos, testemunhos de contemporâneos, monumentos, inscrições etc. Não é jurídico, mas sociológico, o problema dos fatores sociais geradores ou inspiradores das normas jurídicas. Não é jurídico , mas filosófico, o problema do fundamento ético, psicológico, econômico, etc, das normas de Direito.

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São, ao contrário, jurídicos os problemas relativos ao órgão criador do Direito (fonte de produção) e ao processo de manifestação do Direito (fonte de cognição): legiferação, costume, etc. Para o árbitro, o problema das fontes pode ser colocado nos seguintes termos: onde encontrar a solução de um caso proposto em relação ao procedimento e seus efeitos para às partes, que o desafia na relação jurídica arbitral? No Código Civil? Na Lei de Falências? No Código Comercial, etc? Então são estas as fontes em que ele deve se abeberar para sorver o Direito e resolver os conflitos e os efeitos dos atos, fatos e negócios jurídicos na relação arbitral?

Tomada a palavra fonte em sentido corrente, a do Direito, em que se vai socorrer o árbitro, não seria propriamente a lei, esta seria a que emana da fonte3. Mas não há erro, senão apenas verdadeira metonímia, no uso da palavra lei como fonte do Direito4.

3 a Costume

Por ordem de aparição histórica, a primeira fonte do Direito é o costume, que consiste no conjunto de normas de comportamento a que as pessoas obedecem de maneira constante e uniforme pela convicção de sua obrigatoriedade e utilidade.

O costume compõe-se de um elemento objetivo: a reiteração, a constância, a uniformidade, a generalidade da prática de determinados atos, e de um elemento subjetivo: a opinio iuris, o convencimento geral da necessidade jurídica , da obrigatoriedade de observância daquela prática.

Daí que nem todo uso, mesmo constante , uniforme e reiterado é costume, não se podendo afirmar que uma prática se torna obrigatória só pela repetição. Os fatos, por si mesmos , são fatos, e ainda quando acumulados exprimem o que é e não o que deve ser. Não tem força normativa, porque a norma pressupõe uma valoração, isto é, uma operação da inteligência que julga os fatos e uma adesão da vontade aos que são reputados bons para a convivência social, e no caso da arbitragem, os que permitem a valoração do que é necessário para alcançar uma solução justa para os interesses econômicos e sociais pretendidos pelas partes em conflito.

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No direito interno, o valor do costume é secundário, embora no Brasil, a partir da introdução na Constituição da República de 1988 do mandado de injunção (art. 5º , inciso LXXI), autêntico remédio das jurisdições de eqüidade, seu valor entre...

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