A argumentação jurídica

AutorJosé Adércio Leite Sampaio
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor do Curso de Graduação e Pós-Graduação da PUC-MG. Procurador da República
Páginas771-886
C
APÍTULO
I
A ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA
Decisões fundadas em argumentos desenvolvidos sob certos
princípios lógico-jurídicos, que levam em conta todos os interesses
envolvidos, os elementos formais e aspectos de índole extrajurídica,
moral sobretudo, são tendencialmente mais aceitas que outras pro-
feridas apenas sob a força da autoridade ou com base exclusiva-
mente em dados legais positivos. Mil páginas de fundamentação
que indiquem somente o sentimento ou as convicções particulares
do julgador, eruditas que sejam, não gozam da mesma aceitação. A
questão pode tornar-se mais problemática se nos concentrarmos na
definição do público dessa aceitação: será o cidadão das ruas, um
acadêmico, o governo ou o staff judicial? Certamente que uma
decisão coerente em seus termos jurídicos e linha de argumenta-
ção, seguinte a um tradicional modelo de subsunção silogística e a
julgados precedentes, tende a ser mais aceita por um outro juiz do
que por um professor. A vinculação dessa decisão a uma “moral
positiva”, por exemplo, tende a agradar mais a um cidadão das ruas
do que ao governo. Como se pode, no entanto, identificar uma
certa posição judicial com essa moral? Que caminho se deve seguir
para não descambarmos numa investida platônica de reconheci-
mento a um juiz, com poderes hercúleos ou de um oráculo, da pri-
mazia da revelação – ou constituição – dessa moral?
Tais indagações nos colocam diante da necessidade do estabe-
lecimento de um mínimo de regras que devem pautar o processo
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772 A CONSTITUIÇÃO REINVENTADA
decisório judicial. Regras que, como todas, devem ser consensuadas,
levando-se em conta a variedade de opiniões e correntes. Regras que
respondam às indagações formuladas, fornecendo as bases de um
julgamento que, mesmo deixando inconclusa a questão da aceitação,
possa ser submetido ao teste da aceitabilidade. Essa nota última de-
nuncia, contudo, que tais regras não passam de tentativas de racio-
nalização do discurso judicial, que são razões para decisões, mas
que não asseguram, de plano, o sucesso da empreitada. Uma deci-
são judicial, que siga as suas prescrições, será sempre tendencialmente
“boa”, sob o plano axiológico, “acertada”, sob o olhar científico, ou
“válida”, juridicamente, mas poderá não ser a “ideal” ou aquela “mais
justa”, por não ter considerado uma informação importante, todavia,
não disponível ao processo. Se já é difícil um acordo em torno de
uma “teoria de justiça”, sob o ponto de vista prático, as questões
para serem solucionadas com “justiça” se tornam mil vezes mais
complicadas, pela dupla “dogmatização” do Direito. O direito mate-
rial ou as normas jurídicas primárias prefixam uma dada solução de
disciplina, abstrata, descartando, nessa hora, outras possibilidades,
de acordo com um procedimento legislativo que finda numa regra de
maioria. Em um processo judicial, normas secundárias, surgidas na
quase totalidade sob o mesmo rito das substantivas, são usadas na apli-
cação concreta daquela disciplina abstrata, impedindo ou restringin-
do certas condutas. Há momentos certos para requerimento e produ-
ção de provas e para alegações das partes e do juiz até como forma
de possibilitar a continuidade do processo. No entanto, essas restri-
ções, aliadas a outras como o aforismo “o que não está nos autos, não
está no mundo”, tornam o juiz um míope, só enxergando o caso por
meio, pelo menos, de duas lentes, uma fornecida pelo direito material
e outra, pelo direito processual, para ficarmos só nas duas. Por isso,
uma teoria que vise fornecer as regras da racionalidade do discurso
aplicado na decisão judicial deve contentar-se, ou não frustrar-se,
em ser aproximativa dessa racionalidade.
1
Somente uma teoria normativa ou discursiva da sociedade poderia
conduzir a uma teoria racional ilimitada da argumentação jurídica.
2
1HABERMAS. Fatti e Norme: Contributi a una Teoria Discorsiva del Diritto e della
Democrazia, p. 280.
2ALEXY. Teoría de la Argumentación Jurídica, p. 274-275. Podemos, todavia, assumir
uma postura cética em relação ao enunciado do texto, seja renunciando à noção de razão
prática (HUME. Traité de la Nature Humaine, p. 573), seja, sem adentrar nesse problema
sério da filosofia ocidental, reforçando apenas o apelo decisionista da interpretação, em
KELSEN. Teoria Pura do Direito, p. 369, e LLEWELLYN. The Common Law Tradition, p. 521.
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773
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Mas esse é um intento audacioso para quem apresenta apenas o
rascunho de uma teoria da argumentação que se prende a um orde-
namento jurídico positivo e a uma empreitada mais empírica do
que analítica ou normativa da justificação das decisões judiciais em
sede de jurisdição constitucional.
Essas limitações não devem inibir a formulação de uma tal
teoria para tentar conter o voluntarismo das decisões embora, para
muitos, essa afirmação seja um contra-senso. Para nós, no entan-
to, interessa o exame da questão sob um outro ângulo: o da conse-
cução – ou da tentativa – de legitimitação da jurisdição constitucio-
nal a partir da argumentação empregada. Essa legitimação se opera
por meio do emprego de diversas técnicas, que podem ser analisa-
das sob a perspectiva de um padrão fornecido por uma dessas teo-
rias de argumentação.
3
SEÇÃO I
REGRAS DA ARGUMENTAÇÃO
JURÍDICA
Quem quer que resolva apresentar um repertório de regras de
argumentação e adotá-las como ferramenta de trabalho haverá de par-
tir de alguma concepção de Direito. Ainda que termine por deixar,
sem justificação, essa premissa, em linha geral, as regras que se
seguem compõem uma teoria do discurso, fundada no sentido de
Estado democrático de direito, que, se disser alguma coisa, e pare-
ce que diz muito, pois há mais divergências que consenso em torno
do seu alcance, diz que a igualdade deve ser realizada como garan-
Sem embargo, Guastini diferencia três posições relacionadas à interpretação: a cognoscitiva,
a voluntarista e a combinada (Dalle Fonti alle Norme, p. 108). Por certo o Kelsen de
Teoria Pura do Direito se filia, nessa classificação, à terceira corrente no que tange ao
cientista do Direito, pois para os órgãos aplicadores do Direito existe a marca do ato de
vontade.
3Bem farta a bibliografia sobre o assunto, além de outros citados na seqüência: AANIO;
MacCORMICK. Legal Reasoning, 1992; VEITCH. Moral Conflict and Legal Reasoning,
1999; ALEXANDER. Legal Rules and Legal Reasoning, 2000; CAMARGO. Hermenêutica
e Argumentação, 1999 e STRECK. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, 2000.
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