O argumento da "voz diferente" nas trajet

AutorKahwage, Tharuell Lima

1 Introdução

O presente texto é resultado de nosso trabalho de pesquisa de mestrado, no qual buscamos analisar, a partir de dados sobre a composição de gênero dos Tribunais de Justiça estuais do Brasil, por que o Tribunal de Justiça do Estado do Pará é o único cuja composição de desembargadoras ultrapassa a de desembargadores; e se esse fato impacta na atuação jurisdicional do órgão, em termos de efetivação de direitos humanos de mulheres.

Embora exista considerável produção acadêmica sobre a presença de mulheres no Poder Judiciário, na América Latina a discussão ainda está ganhando força, em especial em relação aos impactos que a inserção de juízas pode oferecer para a magistratura e para o Direito. Por essas razões, o estudo do TJPA, além de contextualizar as pesquisas sobre feminização da profissão jurídica no cenário brasileiro a partir de dados sobre a composição de gênero nos Tribunais brasileiros, procura problematizar as possíveis contribuições da presença feminina em órgãos historicamente compostos por homens.

O perfil sociodemográfico da magistratura brasileira tem alterado muito pouco desde os anos 1990: a maioria dos juízes se declara branca, oriunda de estratos sociais médios e altos, casados, com filhos e, em média, têm 46 anos. A maioria também afirma ser católica e ter parentes próximos na mesma profissão. Apesar de algum acréscimo de mulheres e de pessoas não brancas nas duas últimas décadas, o perfil branco e masculino no topo da carreira permanece quase imutável (CNJ, 2018).

Uma exceção, ao menos quanto ao perfil de gênero, é o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA). Em 2014, havia 64% de mulheres no topo da carreira. Além disso, o TJPA foi o primeiro tribunal brasileiro a nomear uma mulher para a sua presidência, ainda em 1979, período em que vários tribunais sequer tinham desembargadoras em sua composição. Nos últimos 10 anos, as desembargadoras exerceram a maioria dos mandatos de presidência do TJPA.

Enquanto boa parte dos estudos sobre desigualdades nas carreiras jurídicas tem se dedicado a entender os obstáculos para que o Judiciário brasileiro possa ampliar os percentuais de mulheres e pessoas não brancas em sua composição, a investigação que dá apoio ao presente artigo buscou identificar, com base na perspectiva das próprias desembargadoras, dois principais aspectos: o primeiro, o que justifica a composição majoritariamente feminina do TJPA, diferindo do perfil de outros tribunais brasileiros, bem como a sua presença nos altos escalões da carreira? O segundo aspecto refere-se à hipótese de uma "voz diferente": a maior presença de mulheres no Tribunal de Justiça do Pará resulta em uma perspectiva diferente no processo de tomada de decisão judicial, ao menos em casos diretamente relacionados a direitos de mulheres?

Para responder a tais questões, analisamos as percepções de desembargadoras e juízas do TJPA sobre os impactos da maior presença feminina no Tribunal. Como demonstraremos nos resultados, preliminar à consideração de uma hipótese de uma "voz diferente" em relação a mulheres e outros grupos minoritários, está a necessidade de se repensar as nuances e obstáculos de uma cultura masculina imbricada na profissão jurídica, que reprime o aparecimento de quaisquer marcadores de diferenças sociais no Poder Judiciário.

  1. Uma "voz diferente" no judiciário?

    As investigações sobre os efeitos da presença de mulheres na profissão jurídica têm sido recorrentes em diversos países (1), sobretudo em relação à carreira da magistratura. Para Kate Malleson (2007), a popularidade desse tipo de estudo reside em dois principais aspectos: a) ele fornece um argumento sedutor em favor da participação de mulheres no Poder Judiciário; b) trata-se de argumento que contrabalanceia a supremacia dos atributos considerados masculinos e, ao mesmo tempo, valida as características femininas, até então marginalizadas e excluídas da esfera pública.

    Em geral, são pesquisas que se propõem a responder a questões como: as mulheres são capazes de influenciar, qualitativamente, a profissão jurídica, resultando em um desempenho diferenciado de tarefas e de funções legais? Há uma "voz feminina" capaz de estabelecer um raciocínio e uma atuação diferenciada em relação aos homens, ainda que apenas em julgamentos relacionados diretamente às temáticas de gênero? (HUNTER, 2015; GASTRON, 2009; BERCHOLC, 2015).

    A hipótese de uma voz diferente (2) ancora-se em perspectivas do chamado feminismo da diferença, dentre as quais se destaca o trabalho de Carol Gilligan (1993), In a Different Voice: Psycological Theory and Women's Development. Nele, Gilligan (1993) analisa o desenvolvimento psicológico moral de meninos e meninas, por meio da apresentação de dilemas morais, bem como a percepção sobre a moralidade de homens e de mulheres. A autora afirma que, nas teorias psicológicas acerca do desenvolvimento moral humano, a experiência masculina constitui o parâmetro de experiência humana, o que culminou na exclusão das vozes de mulheres. Partindo do pressuposto de silenciamento e inferiorização a que são submetidas as vozes femininas, Gilligan (1993) realizou três estudos sobre concepções de self, moralidade, experiências de conflito e de escolha. Uma das conclusões é a de que o desenvolvimento psicológico moral de meninas é diferente de meninos, o que leva à consolidação de moralidades distintas entre homens e mulheres. Para a autora, o desenvolvimento de tais percepções diferenciadas de moralidade seria um produto dos processos de socialização a que homens e mulheres são submetidos, e não algo que remete à essência dos gêneros.

    De acordo com a autora, as mulheres abordam problemas morais com base em uma "ética de cuidado", fundamentada em valores como o cuidado, a conexão e o contexto/particularidade. Isto é, as mulheres raciocinam, moralmente, a partir de uma abordagem voltada à responsabilidade nas relações. Por outro lado, o raciocínio moral de homens se baseia em direitos individuais e abstratos, em detrimento de relações concretas--ou seja, em uma "ética de justiça" (GILLIGAN, 1993).

    Neste cenário, as principais hipóteses de modificações que as mulheres podem promover no exercício da atividade jurisdicional são: a transformação do sistema judicial em instituições menos competitivas e mais cooperativas (GASTRON, 2009); a substituição de uma "ética de justiça", abstrata e imparcial, por uma "ética de cuidado", centrada nas noções de cooperação e de resolução alternativa de disputas (COONEY, 1993); a mudança de ênfase sobre direitos individuais por noções de inclusão, coletividade e responsabilidade social (COONEY, 1993); e a maior empatia e sensibilidade, ao menos em casos envolvendo direitos humanos das mulheres (WILSON, 1992).

    Entre as teóricas que apostam na existência de uma voz diferente e na possibilidade de mudanças na perspectiva androcêntrica e formalista do Direito, destaca-se Carrie Menkel Meadow (2013). Para a autora, a partir de uma performance profissional diferente dos homens, as mulheres podem modificar a lógica de competitividade e agressividade, presentes em litígios, cujos desfechos resultam em perdas e ganhos (3). Outra possibilidade é a criação de estruturas diferentes de trabalho, a exemplo do que já ocorre, nos Estados Unidos, com a criação de escritórios de advocacia feminista, nos quais as mulheres estabeleceram relações mais horizontalizadas e estruturas de trabalho menos hierárquicas.

    Bertha Wilson (1992), juíza aposentada da Suprema Corte do Canadá, também defende o potencial transformador que a maior presença de mulheres pode trazer ao Judiciário. A magistrada acredita que existem áreas do Direito mais (ou menos) suscetíveis à aplicação de uma perspectiva feminina e, a partir da identificação desses espaços viáveis de discussão e de transformação, alguns dos efeitos esperados são: o potencial simbólico-educativo da presença de mulheres; a desconstrução de determinados estereótipos de gênero da magistratura; o aumento da confiança pública de que a diversificação do Judiciário trará ao inserir mais mulheres; e a diminuição de discriminações de gênero nas instituições judiciárias.

    A crítica ao argumento de que as mulheres, por possuírem uma perspectiva distinta em relação aos homens, podem agir diferente na carreira ou mesmo modificar o modelo predominante de atuação jurisdicional, é bastante ampla. Para Deborah Rhode (2003), por exemplo, a divisão do mundo, apenas com base em gênero, ignora outros marcadores de diferença social e circunstâncias que impactam nas perspectivas dos indivíduos, razão pela qual é preciso atentar para, durante a reivindicação de uma voz feminina, não recair na homogeneização da diversidade de experiências, mesmo entre as mulheres. Dependendo da cultura, classe social, raça, etnia, idade etc., os vieses e valores entre as mulheres variam muito, não sendo possível pensar em uma voz diferente como parâmetro das experiências de mulheres de forma universalizante e essencialista.

    Além disso, a autora pontua que essa forma de divisão dualista, entre uma abordagem fundada em princípios abstratos e direitos individuais, e outra baseada em uma ética do cuidado, acaba por reforçar estereótipos de gênero, socialmente, já sedimentados - resultado contrário aos objetivos de qualquer proposta feminista de reforma legal e da profissão jurídica. Por tal motivo, Rhode (2003) entende necessário o afastamento de discursos que se valham de uma natureza essencial da mulher (cuidado, maternal, histeria, emotividade etc.).

    Kate Malleson (2007) também registra críticas ao argumento oriundo dos feminismos da diferença, quando aplicado enquanto substrato teórico em debates sobre igualdade de gênero--fato que tem sido recorrente, a ponto de relegar outros discursos teoricamente mais sólidos (a exemplo da legitimidade e da equidade) à posição de fundamentos complementares. Para a autora, é necessário ter precaução ao utilizar a diferença entre gêneros enquanto estratégia discursiva para sustentar a...

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