As sanções restritivas de direitos e o exercício do poder de polícia

AutorMaria Ângela Lopes Paulino
CargoMestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP. Professora no Curso de Especialização em Direito Tributário da FD/USP e do IBET/SP. Advogada
Páginas89-106

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1. Relevância do tema

O Direito Positivo, na qualidade de objeto cultural, serve como controlador da conduta humana, motivando e alterando o comportamento dos indivíduos, com a finalidade de conferir segurança e justiça nas relações firmadas no convívio em sociedade. No interior da linguagem jurídico-prescritiva, a sanção consubstancia o melhor instrumento para que o Direito cumpra seu papel regulador da sociedade na medida em que serve como expediente efetivo para que o destinatário da mensagem jurídica paute sua conduta dentro dos limites da licitude. O Direito encontra na sanção a ferramenta fundamental para o sucesso desta intervenção.

Especialmente no âmbito do Direito Tributário, cujas normas jurídicas prescrevem deveres que visam, em última análise, à constrição do patrimônio dos contribuintes em favor dos cofres públicos, a função sancionatória torna-se indispensável.

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Contudo, a criação, a interpretação e a aplicação das sanções tributárias pelas autoridades competentes, no âmbito de suas funções estatais - legislativa, executiva e jurisdicional -, encontram-se delimitadas pelo próprio ordenamento jurídico. Isso porque a sanção prescrita pelo Direito Positivo é organizada e institucionalizada,1distinguindo-se das demais sanções normativas, marcadas pela inconstância e incerteza (exemplos: sanção social e sanção moral).

Edificamos a classificação das sanções tributárias, decorrentes do descumprimento da obrigação de pagar tributo ou da inobservância dos deveres instrumentais, adotando como critério classificador o seu caráter pecuniário, dividindo-as, com isso, nas seguintes subclasses: a das sanções tributárias pecuniárias (multas) e a das sanções tributárias não pecuniárias (conhecidas como sanções restritivas de direitos ou interventivas). Neste mesmo rumo, leciona Paulo Roberto Coimbra que "as sanções puramente tributárias, imputadas à prática de infrações materiais e/ou formais, (...) se dividem em duas categorias: sanções pecuniárias e sanções não pecuniárias".2Relativamente às últimas - sanções restritivas de direitos -, seu estudo vem merecendo atenção desafiadora diante de sua imposição em afronta a direitos e garantias constitucionais, por parte do Estado, o qual tende a justificar suas ações, ainda que arbitrárias, na justiça social e no interesse público. É preciso ter em mente que os interesses punitivos não se confundem com os interesses arrecadatórios dos Estados. Porém, há muito o sistema repressivo tem se desvirtuado de seus propósitos, fato que se manifesta na aplicação das denominadas "sanções políticas". Sobre elas empreenderemos a presente proposta cognoscente.

2. As sanções restritivas de direito e o exercício do poder de polícia pela Administração

A atuação administrativa, concernente ao controle e à fiscalização das atividades dos particulares e, eventualmente, à aplicação de sanções, corresponde à atividade do Poder Público desenvolvida sob a égide do "poder de polícia".

O "poder de polícia" conferido à Administração serve para condicionar e restringir, por meio de atos administrativos ou regulatórios, o exercício dos direitos da liberdade e da propriedade em prol da coletividade, compatibilizando-nos, assim, com o bem estar social. Na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello, o "poder de polícia" do Estado "abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente da liberdade e da propriedade dos cidadãos".3No tocante ao regime jurídico-tributário, o legislador complementar, no art. 784do Código Tributário Nacional (CTN), positivou a definição de "poder de polícia" "sobremodo alargada, albergando tanto a edição de lei ou de regulação das matérias que servem de objeto, quanto à fiscalização e às sanções aplicáveis em cada caso".5Dentre essa gama de atividades atrai nossa atenção a função fiscalizadora, em sede da qual, constatada

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alguma irregularidade, cabe ao agente fiscal cominar a sanção adequada, sempre respeitando os limites de sua competência.

É inconteste a importância do poder estatal fiscalizatório na prevenção de condutas em desacordo com a legislação, incompatíveis com o interesse público, cumprindo as sanções restritivas de direito papel eficiente para reprimir as ilicitudes. Contudo, a ativi-dade fiscalizadora e controladora, por parte da Administração, regulando, condicionando e restringindo a esfera dos administrados, deve ser ponderada e adequada em vista do caso concreto, atendendo aos limites da legalidade e da proporcionalidade (adequação, necessi-dade e proporcionalidade em sentido estrito), limites instransponíveis ao seu exercício, como bem assevera Heleno Taveira Tôrres:

"Num Estado Democrático de Direito, não se pode admitir o poder de polícia como instrumento de confisco ou de restrição de liberdades sem justificativas evidentes. Por isso, tais atos interventivos somente serão legitimados quando for o único modo para atingir a finalidade de garantia do interesse público na espécie. E, desse modo, sempre que respeitados os direitos individuais, bem como, na delimitação das sanções, os princípios de proporcionalidade e de legalidade, o legislador poderá recorrer a uma atuação direta sobre a propriedade ou atividade do administrado, visando a reprimir o abuso praticado mediante impedimentos ou restrições ao exercício de direitos".6Com efeito, a resistência ao recurso das sanções restritivas de direitos com o intuito de instigar o cumprimento dos deveres tributários é justificável, à luz dos valores contemplados na Carta Constitucional, sobretudo os enunciados axiológicos que visam a preservar a liberdade e a propriedade. Acrescenta-se, ainda, que há uma série de outros meios ordenados ao Fisco para exigir a conduta devida e o fato de que, conforme a natureza e a intensidade do expediente sancionatório adotado, a capacidade de solvibilidade do contribuinte poderá ser, significadamente, comprometida, inclusive para o pagamento de tributos a incidir sobre fatos geradores futuros.

No âmbito do Direito Tributário, observa-se o uso de sanções restritivas de direitos, tipicamente de poder de polícia, desautorizado pela nossa Constituição Republicana, uma vez que impostas coercitivamente, pela Administração, com o propósito único e exclusivo de garantir a satisfação do crédito tributário, afetando a propriedade e liberdade do contribuinte, sem o respeito ao devido processo legal.

3. A inconstitucionalidade das "sanções políticas" como instrumento para coibir o sujeito passivo ao pagamento do tributo

Denominam-se de "sanções políticas" os constrangimentos inconstitucionais levados a efeito pela Administração Fazendária no intuito de forçar o sujeito passivo ao pagamento do tributo. Trata-se de um desvio da potestade tributário-punitiva do Poder Público. Sua imposição está, intimamente, relacionada com os limites outorgados ao agente fiscal no seu exercício de fiscalização das atividades dos contribuintes, a fim de apurar a regularidade no cumprimento das obrigações tributárias e dos deveres instrumentais.

Em termos genéricos, as sanções políticas compreendem as medidas restritivas de direitos impostas, pela própria Administração, ao sujeito passivo que visam a obrigá-lo, por via oblíqua, a recolher a exação tributária em favor dos cofres públicos, sem, contudo, recorrer ao Judiciário com a observância do devido processo legal.

Dada a relevância do tema, mister se faz analisar quais os seus elementos caracterizadores e os fundamentos para sua ilegitimidade perante o ordenamento jurídico, trazendo à colação casos específicos contemplados na pragmática jurídica.

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3. 1 A caracterização das "sanções políticas": uma construção jurisprudencial

A caracterização das sanções políticas pressupõe, cumulativamente, a presença dos seguintes elementos: (i) forma "coercitiva" de a Administração Fazendária exigir o cumprimento da obrigação tributária (pagamento do tributo) em face do contribuinte, sem a observância do devido processo legal e (ii) limitação ou ofensa a direito individual, notadamente ao direito à propriedade, à liberdade de trabalho e/ou ao livre exercício da atividade econômica. Tem-se aqui uma ingerência estatal nas liberdades conferidas ao contribuinte no exercício de suas atividades privadas, sem prévio procedimento judicial autorizando-a, com vistas ao recolhimento de tributo não pago, em expressa violação aos arts. 1º, IV (livre iniciativa e valorização do trabalho); 5º, caput (inviolabilidade à liberdade e à propriedade), incisos XIII (livre exercício do trabalho, ofício ou profissão7), XXII (garantia ao direito de propriedade), XVIII, XIX (liberdade de associação), LIV (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal), LVII (presunção de inocência); e/ou 170, caput, IV e parágrafo único (princípios gerais da atividade econômica), todos da Constituição Federal, conforme as circunstâncias do caso concreto.

De acordo com Hugo de Brito Machado,8as sanções políticas restam caracterizadas quando a restrição, por parte do ente tributante, acabe por cercear a "liberdade de exercer atividade lícita" e, como tal é "inconstitucional, porque contraria o disposto nos arts. 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do país". O...

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