As relações multiformes entre contrato e risco

AutorMaria Luíza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Páginas109-126

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A ampliação do mercado de bens e serviços, como consequência natural do processo de globalização da economia, tem ocasionado uma crescente con-tratualização de novas práticas do comércio, interno e internacional, assinalando a existência concomitante de contratos estruturados pelos seguintes esquemas: (i) clássico, assinalado pelo voluntarismo e pelo respeito quase incondicional aos postulados da autonomia da vontade e da liberdade de contratar; (ii) neoclássico, marcado por regras de disciplinamento exterior e de tutela social; e (iii) contratos organizados e regulados a partir das demandas do mercado globalizado, nomeadamente os contratos nos setores comerciais e financeiros, impulsionadores de um processo de permanente reestruturação do direito dos contratos.

Na atualidade dos negócios globais, encontram-se em causa os fragmentos teóricos que foram sendo justapostos pela doutrina, desde o Liberalismo clássico, com vistas à sedimentação das bases analíticas do contrato, enquanto operador social e económico,1 o que tem provocado importantes discussões em torno de seus princípios norteadores, do seu tempo de duração, dos novos instrumentos de equilíbrio contratual e, por conseguinte, das maneiras mais recentes de lidar com a questão dos riscos. As mudanças ocorridas na esfera contratual conseguem pôr na berlinda muitos elementos que hoje compõem a teoria dos contratos, num duplo movimento que assinala a presença de tendências aparentemente opostas e contraditórias. No contexto atual dos negócios, formas neoclássicas de subjetivação e de voluntarismo contratual, exercitadas na esfera do comércio internacional, parecem correr em paralelo com as possibilidades de intervenção imperativa no conteúdo do contrato, ainda exercitada pelos poderes locais. Enquanto no primeiro ambiente acompanha-se a reconfiguração da autonomia negociai priva-

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da, nas instâncias públicas estatais ou comunitárias consolidam-se medidas garan-tidoras das formas básicas de proteção e de controle dos excessos, inseridas no espaço de comunicação entre o ordenamento civil e os postulados constitucionais.2

A presente conjuntura - marcada, por um lado, pelo ressurgimento de elementos importantes do subjetivismo contratual e, por outro lado, pela reação institucional tendente à preservação dos motivos que autorizam o procedimento interventivo externo (objetivação contratual3) em setores específicos da contratação - permite que se vislumbrem no interior do enquadramento discursivo algumas circunstâncias reveladoras do panorama atual dos acordos. Nesse sentido, interessa-nos destacar, para além da relativização do elemento voluntário e intencional da declaração, as formas renovadas de produção de risco e os novos modos de gestão dos riscos engendrados no curso da relação contratual. É, portanto, nos limites da ambivalência acima encetada que se volta a pôr em relevo a ideia de risco, em perspectiva paradigmática, algo diversa da relação que sempre existiu entre o instituto do contrato e as situações que potencializam o prejuízo.

Afirmar que existe algo de especialmente inédito entre o instituto do contrato e o risco pode, em princípio, parecer re-preensível; afinal, o risco (e, de certo modo, a aleà), enquanto variável de retorno, sempre esteve efetivamente vinculado ao resultado dos pactos em geral. Contratar é, em si, uma potencial situação de risco, e esta afirmação não comporta qualquer novidade. Convém antes, porém, entender que, nesse quadro genérico, o risco corresponde, em suma, à plausibilidade de prejuízo financeiro, sub-reptícia a qualquer acordo e proveniente, via de regra, de acontecimentos inesperados que afetam os negócios, tomados isoladamente. Referem-se, portanto, a possibilidades genéricas de perdas específicas.

A problemática da incidência do risco nos negócios privados não se esgota, entretanto, na situação indicada. Falar, hoje, de "riscos" na esfera dos contratos significa ampliar a questão de modo a encará-los conexos ao fato de contratar e à operação contratual, no seu conjunto. Significa, ainda, investigar acerca das formas de responsabilização; pensar os perigos que pode ocasionar o desequilíbrio entre as vontades contratantes; trazer ao debate o risco da administração (convencional e preventiva) das cláusulas contratuais gerais, sem esquecer de ponderar, em contrapartida, a respeito do risco da intervenção externa na disciplina interna dos pactos, ante a insegurança causada pela ausência de parâmetros efetivos de controle. Enfim, refletir, sobre o tema do risco inclui discernir sobre sua gestão ex ante e ex post, numa análise geral e particular, que enxergue o contrato como disciplinador mas também como produtor do risco, diligenciando, sobretudo, para não se deixar levar pela mistificação ou por reclamos inconsistentes a genéricas instâncias éticas.4

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1. Uma tipologia dos riscos Riscos técnicos (específicos e sistémicos) e riscos globais

Inicialmente5, se tomarmos por empréstimo uma tipologia de classificação de riscos estabelecida pelo Core Principies for Ejfective Banking Supervision (Basle Com-mittee, 1997 - risks in banking)6 para as instituições financeiras, poderemos dividi-los em: (i) risco de crédito, incluídos, dentre outros, os riscos de inadimplência, de degradação da garantia e de operações internacionais (de câmbio ou títulos); (ii) risco de mercado, potencializado pela instabilidade e pela diversidade do mercado, insertas as perdas decorrentes das taxas de juros e de câmbio, do uso de derivativos ou futuros e o risco da liquidez; (iii) risco legal e jurídico (este último, no sentido de jurisdicional), ocasionado pela ação externa dos órgãos de fiscalização, governo e regulamentação, incluído neste item o risco advindo de cláusulas contratuais de interpretação duvidosa (risco de contrato), de mudanças na tributação, de sanções dos ór-gãos reguladores e de decisões judiciais; e, por último, (iv) o risco operacional, resultante de falhas ou inadequação entre processos internos e sistemáticos (questão de análise e controle de dados, por exemplo), problemas tecnológicos e pelo fator humano (problemas com pessoas).

Se prestarmos bem atenção, veremos que, embora o risco contratual, segundo a classificação apontada, esteja inserido nos riscos decorrentes da fiscalização externa (nomeadamente a que ocorre na esfera jurisdicional), não representa qualquer prejuízo à análise a tentativa de ampliar e generalizar esta tipologia de modo a torná-la empiricamente adequada à temática genera-lista dos contratos. As possibilidades de prejuízos que se acostam, em geral, às diversas espécies de pacto não distam do elenco referido - ou seja, é possível enxergar riscos de crédito, de mercado, risco legal e risco operacional na averiguação regular do risco contratual.

Essa sistematização pode, por sua vez, ser enquadrada em dois grandes desdobramentos: (i) riscos técnicos, tidos como acontecimentos possíveis de ocorrer em data incerta, de resultado circunscrito, avaliados e medidos por abordagens quantitativas e qualitativas previamente conhecidas (muitas delas estabelecidas em lei ou no próprio instrumento do contrato), com a particularidade de somente atingirem os sujeitos direta ou indiretamente interessados; e (ii) riscos globais, inseridos numa avaliação de matriz econômico-financeira e de natureza sociológico-dogmática, que transformou abstratamente em risco o conceito concreto de perigo.7

Os riscos técnicos podem ser avaliados em diversos contextos, antigos e atuais. As relações do contrato com a figura do risco vêm identificadas, em geral, de duas maneiras, sendo uma conhecida, consolidada e não objetada e a outra, mais recente, vista como matéria de debates con-

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temporâneos incidentes sobre os modos de formação e execução dos contratos e sobre as novas técnicas de gestão dos riscos. Estamos nos referindo, no primeiro caso, à qualidade do contrato como debelador e disciplinador do risco, posição que o instituto sempre ocupou no seio da doutrina e da regulação jusprivatística tradicional, enquanto instrumento de disciplinamento de vontades teoricamente autónomas e livres; e, no segundo caso, à condição do contrato como o próprio causador e produtor do risco no contexto dos negócios que ocorrem nos setores comerciais e financeiros do Capitalismo contemporâneo. São os riscos específicos, a que nos reportávamos linhas atrás.

Situação mais grave e diversa vem configurada, nos extremos, pelos riscos que a contratação empreendida num determinado setor da economia globalizada pode produzir, em efeito cascata, sobre os agentes envolvidos (grupos empresariais e instituições financeiras), sobre os mercados e, de igual modo, sobre a coletividade global, tomando a dimensão de uma possibilidade de perda que se processa em cadeia no espaço mundial. Estas eventualidades, encaradas no plano macro, são conhecidas como riscos sistémicos ou de mercado.

Os riscos globais dar-se-iam no limiar desses riscos técnicos de mercado, com intensidade agravada, culminando na propagação dos efeitos nocivos de um contrato ou de uma série deles, de maneira abrangente, por sobre pessoas e...

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