As situações propter rem no direito civil brasileiro do século XXI

AutorRoger Silva Aguiar
Páginas95-116
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AS SITUAÇÕES PROPTER REM
NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO DO SÉCULO XXI
Roger Silva Aguiar
Doutor em Direito Civil. Presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito
Civil. Membro do Conselho Consultivo da Academia Sino-Lusófona da Universidade
de Coimbra. Pesquisador do Instituto da Banca, Bolsa e Seguros, da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Membro da Ius Civile Salmanticense –
Salamanca. Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais.
Sumário: 1. Introdução – 2. Das obrigações propter rem e com ecácia real, e do ônus real – 3.
As despesas condominiais e o pagamento, pelo adquirente, das dívidas deixadas pelo antigo
proprietário – 4. A obrigação de contribuir para a manutenção das atividades da associação ad-
ministradora de loteamento com acesso controlado – 5. A atribuição do caráter propter rem às
obrigações ambientais – 6. O fundamento das situações propter rem na realidade jurídica brasileira
hodierna – 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O estudo do envolvimento das obrigações com os bens proporciona, àqueles
que nele se aventuram, o curioso paradoxo de se revestir de uma aparente facilidade,
diante da fartura – uma verdadeira cornucópia – de estudos e análises sobre o tema,
aliada a uma intrincada complexidade, decorrente da quase absoluta ausência de
unanimidade, na doutrina, sobre qualquer ponto da matéria.
In Vero, falar sobre esta temática é prelecionar sobre a divergência: o conceito
ou terminologia, a extinção da obrigação propter rem, através da renúncia ou aban-
dono do bem, passando por seu conteúdo e características fundamentais, tudo foi
discutido e rediscutido pela doutrina, surgindo do debate uma enorme miríade de
entendimentos e opiniões.
Isso se dá, aparentemente, porque a temática é mais uma “vítima” da segunda
diretiva do pensamento cartesiano que determina a divisão, com a consequente
identif‌icação e rotulação, dos elementos a serem examinados, em tantas parcelas
quantas seja possível, de forma a facilitar sua análise e compreensão.
O Direito que se mostra, no ramo das ciências humanas, aquela que se constrói
da forma mais racional e lógica possível, cede muito fácil a tal orientação e se fraciona
continuamente. Por exemplo, de seus ramos principais – público e privado – para
o direito civil; do direito civil para os direitos obrigacionais e os direitos reais; os
direitos obrigacionais em obrigações de dar, fazer ou não fazer; as obrigações de dar,
em dar coisa certa e dar coisa incerta. Sempre no intuito de encontrar a partícula
mais simples e, assim, facilitar seu estudo.
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Ao lado desse método de estudo, está também o insof‌ismável positivismo ex-
tremado que se fez presente no direito privado brasileiro, ao longo de todo o século
XX, e que ainda hoje informa muito do estudo doutrinário civilista, mediante o qual
se tenta explicar o instituto exclusivamente à luz da Lei ou, ainda pior, imagina-se
que um instituto somente existe porque foi criado por aquela. Em outras palavras: a
realidade jurídica é fruto da Lei e, se não está na Lei, então não existe.
Não se leia nas palavras acima um desprezo pelo método enquanto instrumento
científ‌ico ou, em outro turno, pela Lei e seu papel no desenvolvimento e na aplicação
dos institutos jurídicos.
Ocorre, entretanto, que nem sempre a realidade se deixa apresar com tal prag-
matismo, ou depende do processo legislativo para existir. Esta dissonância se faz
sentir justamente em temas como este, em que não se observam padrões def‌inidos,
absolutamente distintos, mas um dégradé de um instituto para o outro.
No afã de identif‌icar e catalogar, muitos doutrinadores se socorrem da f‌igura
do hibridismo, com a qual mantêm o objeto de estudo dentro das categorias já f‌ixa-
das – ainda que muitas vezes, na verdade, se crie uma nova f‌igura. Desta estratégia
resulta que toda a análise escorrerá por esta “terceira via”, tornando a investigação
um mero diletantismo.
Todo este trabalho, entretanto, que obviamente possui importância do ponto
de vista científ‌ico, converte-se em nocivo, quando se torna um f‌im em si mesmo.
Neste momento, a doutrina deixa de estar preocupada, por exemplo, em examinar
um instituto e compreender o seu funcionamento, de forma a permitir o seu melhor
emprego e seu possível aperfeiçoamento – aqui incluindo novas hipóteses de uso –
para simplesmente criar teorias e mais teorias que muito pouco, ou verdadeiramente
nada, contribuem para tais propósitos, preocupando-se como Narciso, à beira do
lago, com a sua própria beleza. Em tal descaminho, sequer o Positivismo, ao qual se
fez menção, resiste: se necessário for, se “tortura” a Lei, para fazer caber nela o que
doutrinariamente se anseia.
O estudo dos institutos que compreendem o envolvimento da “obrigação” com a
“coisa” – assim referenciados, da forma mais despida possível, para que o leitor possa
situá-los na vida real – sem dúvida padeceu de muitos dos vícios acima vislumbrados.
O presente artigo, que tem por mote adicional, mas não menos importante, a
proposta de examinar o tema à luz do novo Código Civil brasileiro, pretende tomar um
caminho um pouco diverso, adotando a solução kierkegaardiana quando examina a
questão do Amor. Søren Kierkegaard, f‌ilósofo que está nas origens do existencialismo,
chegando a ser considerado o “pai” desta corrente f‌ilosóf‌ica, recusando-se a examinar
o Amor sob o prisma metafísico, escreve o livro “As Obras do Amor”, no qual trata das
consequências práticas que podem advir da presença do amor na existência humana.
Nesta esteira, ainda que sem prescindir de uma primeira seção, na qual se cotejará
a diferença entre institutos que guardam a natureza de situações propter rem – com
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