Aspectos jurídico-educacionais da carta de 1824

AutorVicente Martins
CargoProfessor do Centro de Letras e Artes da Universidade Estadual Vale do Acara (UVA) com mestrado em Legislação Educacional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: vicente.martins@uol.com.br
Páginas138-158

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A Educação, como norma jurídica, não é, propriamente, matéria de Constituição. A primeira destinação de uma Constituição é a de ser norma que proclama o titular do poder.1

A Constituição é uma espécie de certidão de nascimento do Estado. Daí, a Ciência Política definir Estado como sociedade política e, juridicamente, organizada. Mas, na medida em que esse Estado passa a formalizar os anseios da Nação, que é seu organismo psíquico e social, reflete, nos seus documentos, ordenamentos, normas e leis, os ideais sociais, as utopias da homem.

Foi assim que o Estado evoluiu, de patriarcal para patrimonial, de individual para social, incorporando, nos seus ordenamentos jurídicos, as aspirações nacionais.

O Brasil, a partir da sua Independência Política de 1822, estará sob a influência de um Estado de Direito cuja referência externa está na Revolução Francesa de 1789 e que vem, à guisa de lá, assinalar, no País, o surgimento de um regime liberal e a passagem da condição individual e servil de súditos da Coroa Portuguesa, marca do nosso Colonialismo, para a de cidadãos do Império.

O Estado de Direito será, sobretudo, o resguardo das liberdades, garantias individuais e os direitos de cidadania, reforço também das proclamações liberais, entre as quais a da educação fundamental e gratuita, discurso, no século XIX, transcrito nos ordenamentos jurídicos das nações emancipadas, mas sem que isso resulte, concretamente, em direito público subjetivo.2

A inserção da Educação, nos textos constitucionais, assinala, pois, do ponto de vista formal, a passagem do Estado Individual para o Estado Social.

A primeira Constituição brasileira registra a Educação, como norma constitucional, no âmbito de seus elementos orgânicos, ou melhor, no conjunto dos artigos que tratam substancialmente dos princípios normativos e essenciais relativos à forma de Estado, à organização e a funções dos poderes públicos, e aos direitos e deveres dos cidadãos. Não é, rigorosamente, ainda matéria exigida pelo Estado.

Sem uma compreensão histórica das concepções de Constituição e de Educação e em diferentes épocas e também em diferentesPage 139 modalidades de Estados, muitas vezes se peca, hoje, final do Século XX, por se fazer um juízo de valor contra o conteúdos dos textos constitucionais do Século XIX , principalmente quando estes não trazem de forma explícita e detalhada uma atenção à matéria educacional. É o que se verifica na leitura de alguns historiógrafos da educação brasileira ao fazerem a relação entre Educação e Constituição.

Em geral, apontam a Constituição de 1824, outorgada, como aquela que não deu a devida atenção ao ensino.3

No caso da Constituição de 1824, o texto, do ponto de vista constitucional mais rigoroso, mostra-se coerente por apenas disciplinar, na ordem jurídica, a gratuidade da instrução primária e incluir a criação de colégios e universidades no elenco dos direitos civis e políticos.4

Uma pergunta pode resultar da colocação acima: se não é matéria constitucional, a Educação é legalmente responsabilidade de quem? É tarefa do legislador ordinário e não do Constituinte. A ação do Estado, em assunto de Educação, especialmente na organização dos sistemas de ensino público, deve ser, convenientemente, exercida pelo legislador ordinário.

Mais tarde, especialmente com a Constituição Republicana de 1934, a Educação receberá espaço expressivo no Estado intervencionista, ainda assim, do ponto de vista do Direito Constitucional, o Estado não reclamaria a Educação enquanto disciplina constitucional específica, autônoma. É, doutra perspectiva, a da organização escolar, até mesmo anti-pedagógico, anti-civilizacional que a Educação seja formalmente exposta nos textos constitucionais, dentro de um padrão rígido, em que condiciona a política educacional à ação do Estado, especialmente às ações de interesse do governo na estrutura de poder.

Qualquer texto escrito na Constituição é um padrão rígido para a sociedade, é tirar não apenas a liberdade de ação e de engajamento da sociedade como também de seus representantes na sociedade política, em especial do legislador ordinário.5 Aprofundemos, então, a educação, como norma jurídica, no âmbito da Constituição Imperial de 1824.

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Comecemos a nível do Governo Imperial. A Constituição Política do Império, a chamada Carta de Lei de março de 1824, reconheceu como poderes políticos os seguintes: a) o Poder Legislativo; b) o Poder Moderador; c) o Poder Executivo e d) o Poder Judiciário. O Poder Legislativo é delegado à Assembléia Geral, composta pela Câmara dos Deputados e pela Câmara de Senadores. Tinha, pelo menos, dezesseis matérias de sua atribuição, isto é, sob sua competência legislativa. A Educação não é contemplada como matéria de atribuição expressa da Assembléia Geral (Art. 15).

Já revelando a tendência do Estado brasileiro, em que a Colônia6 , no regime de capitanias, apresentava as bases para o processo de centralização política e cultural do país, a Educação, no Império, surge como matéria de competência do Poder Moderador. O Poder Moderador, pelo artigo 98 da Constituição de 1824, é considerado como a "chave de toda a organização política" do Império.

É um poder delegado privativamente ao Imperador. Interessante notar que o advérbio privativamente é que, decerto, justifica a delegação outorgada pelo Imperador à Assembléia, quando se determina, no texto constitucional, que "Os mestres dos príncipes serão da escolha, e nomeação do Imperador, e a Assembléia lhes designará os ordenados, que deverão ser pagos pelo Tesouro Nacional" (Artigo 110) e delega, em seguida a missão coercitiva ao Parlamento para que "Na primeira sessão de cada Legislatura, a Câmara dos Deputados exigirá dos Mestres uma conta do estado do adiantamento dos seus augustos discípulos" (Artigo 111).

São dois elementos orgânicos que formalizam e resguardam a estrutura de poder imperial. Vale lembrar que a delegação do Imperador à Câmara dos Deputados, para exigir a qualidade de ensino ministrado pelos Mestres aos "augustos", cumpria a competência privativa da Câmara dos Deputados, que tinha, entre outras atribuições, a de recrutamentos (Artigo 36, II).

O adjetivo augustos é sintomático da ideologia imperial. Revela o tom de majestade agraciada aos discípulos-príncipes. Interessante é que os Mestres, que servem à estrutura do poder, são apenas Mestres, sem nenhum qualificativo, homens que muito sabem, mas apenas ensinam, sem que recebam, para tanto, nenhum adjetivo majestático.

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Nas Disposições Gerais da Carta de 1824, a matéria educacional será registrada em dois incisos do artigo 179, que trata da inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, em que determina que "a instrução pública é gratuita a todos os cidadãos" (Artigo 179, XXXII), de cunho liberal, e "Colégios e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Ciências, Belas Letras e Artes" (Artigo 170, XXXIII), de cunho elitista e humanista. Aqui, as duas normas estariam inseridas nos chamados elementos formais de aplicabilidade, segundo a tipologia adotada por José Afonso da Silva (1992), como já tivemos oportunidade de enumerar antes.

No plano das províncias, as raízes da educação como matéria de competência legislativa infraconstitucional devem ser buscadas no período regencial. Voltemos à Carta de Lei de 25 de março de 1824, outorgada por Dom Pedro I. Determina-se no seu artigo 2o que o território do Império do Brasil é dividido em Províncias na forma em que se achava no ano de 1824, as quais, segundo o preceito constitucional, poderiam ser subdivididas, como a bem pedir do Estado (Artigo 2o).

A estrutura de poder político é extremamente tutelada pelo Poder Moderador, delegado, privativamente, ao Imperador, posto que "Cada Província dará tantos senadores, quantos forem metade de seus respectivos deputados, com a diferença de que, quando o número dos deputados da Província for ímpar, o número dos seus senadores será metade do número imediatamente menor, de maneira que a Província, que houver de dar onze deputados, dará cinco senadores" (Artigo 41).

Tal estrutura de composição senatorial resultava da organização da eleição provincial cujo Senador era composto de membros vitalícios (Artigo 40). Entre as exigências para ser senador, o cidadão deveria ser uma "pessoa de saber" (Artigo 45, II), além da capacidade e virtudes. O senador, uma vez indicado, tinha atribuições exclusivas (Artigo 47).

As Províncias tinham, através dos Conselhos Gerais de Províncias, atribuições enumeradas uma vez que "a Constituição reconhece, e garante o direito de intervir todo o cidadão nos negócios da suaPage 142 Província, e que são imediatamente relativos a seus interesses peculiares" (Artigo 71).

O Conselho Geral da Província, estabelecido em cada Província, era exercitado pelas Câmaras dos Distritos e pelos Conselhos (Artigo 72). As províncias do Pará, Maranhão e Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, as mais numerosas, tinham vinte e um membros em cada um dos seus Conselhos Gerais.

Segundo o estabelecido na Constituição de 1824, o Presidente da Província instruiria, a cada instalação do Conselho Geral, o presidente do Conselho para tomar providências no que se refere ao estado dos negócios públicos e das medidas que a mesma Província mais precisaria para seu melhoramento (Artigo 81), o que, decerto, implicitamente, a educação local estaria incluída no rol dos "negócios públicos" da Província.

Determina ainda a Constituição imperial que, após ouvir "o estado dos negócios públicos" instruído pelo Presidente da Província, o Conselho teria por "principal objeto propor, discutir, e deliberar sobre os negócios mais interessantes das suas Províncias; formando projetos peculiares, e acomodados às suas localidades, e urgências" (Artigo 81).

Estabelecia-se também que os negócios que iniciados nas Câmaras e remetidos oficialmente ao Secretário do Conselho, aonde...

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