Aspectos da tutela do direito à saúde no ordenamento jurídico pátrio – ponderações sobre relações de direito público e de direito privado

AutorMSC. Júlio César Ballerini Silva
CargoMagistrado, mestre em processo civil (puccamp) e professor universitário

PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES INTERDISCIPLINARES

Não é desconhecido dos operadores do direito, o fenômeno do esgotamento paradigmático do pensamento jurídico fundado a partir da premissa de um direito natural (concepção tomista que foi empregada por séculos pelos juristas como modo de pensar dogmaticamente o direito) que encontra inúmeras dificuldades de resolver os problemas decorrentes da complexidade das relações intersubjetivas.

Tanto assim que autores como Celso Lafer propugnam, como proposta inicial para a solução do problema referente ao hiato apontado, a adoção de um novo modelo paradigmático(1) (o referido autor propõe chamá-lo de paradigma da filosofia do direito, para permitir um “pensar” menos dogmático, mais aberto ao “perquerir”, tomando, aliás, o dogma não como um fim em si mesmo, mas, ao contrário, como um ponto de partida, como, ademais, vinha sendo sugerido por Tércio Sampaio Ferraz Jr.,(2) permitindo-se a interpretação que autorize abranger fatores interdisciplinares).

E isso se torna relevante na medida em que, igualmente, se tem por inegável que o Direito seja um fenômeno histórico, revestido de temporalidade e que, nos primórdios da civilização já tinha seu conteúdo intimamente ligado aos desígnios dos detentores do poder (verbi gratia, no Egito Antigo, no período conhecido por Antigo Império, ou seja, entre 2.664 a C e 2.155 a C, cunhou-se a expressão segundo a qual “o justo é o que o faraó ama, e o mal é aquilo que o faraó odeia”(3)), reforçando-se o entendimento segundo o qual o direito implica numa evidente técnica de controle social (caráter igualmente destacado pelo já mencionado Tércio Sampaio )(4)

E essas concepções ligando o Direito ao poder se tornam uma questão de grande relevo posto que, em um mundo globalizado, em que o poder econômico se concentra pólos globalizantes opostos aos dos globalizados, se pode passar a questionar se fatores intimamente ligados ao poder não estão colocando em xeque a interpretação que se possa fazer do ordenamento jurídico como um todo, até porque não se desconhece que exista uma estreita relação entre direito e ideologia, eis que, como asseverado acima, o direito enquanto técnica de controle social está intimamente ligado à questão do exercício do poder estatal (e isso é ponderado, sob um prisma acadêmico, sem qualquer juízo de valor a respeito da justiça ou injustiça dessa situação, por exemplo, ou se isso seria inexorável ou não, conveniente ou não).

E tal discussão se torna muito evidente e atual, num mundo em que as informações e a tecnologia são difundidas de forma muito rápida, por veículos como a internet e a própria mídia, de um modo geral, observando-se uma crise de efetividade, outro fator de complexidade a ser sopesado (e, lamentavelmente, não se tem observado a preocupação das Faculdades de Direito em enfocar tais situações) em primeiro lugar, do ordenamento jurídico enquanto tal (como se pode entende-lo como forma de controle social eis que o mesmo para ser alterado exige uma série de atos e formas dos poderes normativos, que demandam um tempo totalmente incompatível com as mudanças sociais, e, sobretudo, econômicas ?), o que vem acompanhado da crise instrumental (se o ordenamento estabelece direitos, em caso de violações a esses direitos tem-se o direito de ação para o devido restabelecimento da situação, o qual, como é cediço, repousa num instrumental processual para que possa ser exercitado), o que nos conduz a um terceiro evento, qual seja, o da crise do Poder Judiciário (ente institucional que tem por função precípua o exercício da jurisdição, ou jurisdicere, poder de “dizer o direito”, de forma imparcial).

Tais variáveis são postas em conflito, de forma candente, na questão de massas que se delineia no presente momento, com a discussão das ações que se tem observado de um modo mais ou menos freqüente, nos mais variados juízos pátrios, envolvendo processos das mais variadas matizes (ou seja, envolvendo relações jurídicas de natureza pública e de natureza privada(5)), tendo por objeto a garantia de meios materiais para a preservação da saúde dos indivíduos, seja perante o Poder Público, seja perante entidades privadas (como se dá, por exemplo, em relação às empresas mantenedoras de planos de saúde ou de seguro saúde).

Daí a relevância do tema proposto, justificando-se a escolha do tema escolhido para a elaboração do presente artigo.RSIT[ARIO23232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323232323

O DESAFIO DA COMPLEXIDADE E A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO – OS LIMITES DE ALCANCE DO PRESENTE TRABALHO

E, como é de conhecimento geral, tal como ponderado linhas atrás, um grande contingente de ações similares tem sido suscitado perante Fóruns de todo o país, fazendo com que o exame de algumas questões comuns passe a ser de grande relevância prática e acadêmica, no enfrentamento de questões abordando o reconhecimento do chamado direito à saúde.

Tal volume de ações, inclusive, acaba por contribuir para o agravamento da chamada situação que vem sendo conhecida, de um modo mais ou menos uniforme, como a crise do Poder Judiciário.

Existem, ademais, razões aptas a explicarem tal fenômeno, diante das dificuldades existentes em relação à estrutura do Poder Judiciário estatal para dar vazão ao julgamento de demandas, de forma imparcial, de forma célere, o que tem sido analisado por vários segmentos doutrinários, devendo-se destacar o importante trabalho desenvolvido, de forma imparcial, analisando inúmeras vertentes desta problema, realizado por José Rogério Cruz e Tucci.(6)

Mas é importante que se destaque que tal como demonstrado pelo cientista Edgar Morin(7), na sua célebre análise do paradigma da complexidade, o pensamento científico não mais pode prescindir da perquirição interdisciplinar na busca de soluções aos problemas a serem enfrentados, posto que, numa sociedade tal como se encontra no estado atual, não mais existiria campo de estudos completamente estanque das demais áreas do pensamento.

Isso porque a ciência deixou de ser um conhecimento absoluto, calcado, apenas e tão somente na verificação empírica, de leis e postulados sem exceção, eis que, em qualquer campo de análise, de se analisar o feixe de fatores a ele relacionados, cujos reflexos poderão influenciar no resultado final.

Tais detalhes não tem permanecido alheios à interpretação do direito, sendo pormenorizadamente destacados em questões como a decidida, por exemplo, pelo Supremo Tribunal Federal na situação de cobrança de contribuições previdenciárias de servidores inativos (outro dado insistentemente divulgado pelos mass media), ou na revisão de entendimentos até então cristalizados, como a referente à inconstitucionalidade de fixação de regime integral fechado nos crimes reputados hediondos.

Com isso pode-se dizer que o sistema judiciário, que já se encontrava vivendo uma crise sem precedentes (fenômeno, aliás, que não é uma exclusividade brasileira, eis que vivenciado no mundo todo, de modo mais ou menos uniforme), passa a ser observado com maior intensidade, quando do advento de questões como, por exemplo, a suscitada a partir do precedente formado no chamado “Caso Kelly”, ou a questão das diferenças de correção monetária por Planos Econômicos (Bresser, Verão, Collor I e Collor II)(8), posto que se encontra, nessas condições, diante de situações em que a solução técnica se encontrará em situação que se encontra em confronto com a solução exigida para a solução de outros problemas de índole para-jurídica (ou seja, complexos problemas econômicos em confronto com a legislação processual e consumerista a respeito do tema, levando a um patente conflito de matiz ideológica para a solução do referido impasse)(9), em decisões que influenciarão a vida de um número muito grande de pessoas e do próprio país (de modo que parece, inclusive, pertinente, que se aceite a coletivização da discussão, racionalizando-se a prestação jurisdicional, o que implicaria em atender aos princípios da celeridade e economia processuais, mas, sobretudo, harmonizaria o sistema, evitando-se a coexistência de decisões contraditórias)(10)

Tal deve ser explicado porque o objetivo fulcral do presente texto não pretende ultrapassar tal linha de considerações, não se tendo a pretensão de esgotar os limites do tema sob a ótica de tais fatores, mas, ao contrário, busca-se, apenas e tão somente que sejam tecidas algumas considerações de índole técnica, sobretudo versando sobre questões processuais que tem sido observadas, com bastante freqüência, nos inúmeros grupos de ações propostas em referência a tal espécie de tutela.

Sobre os aspectos macro-fatorais aduzidos, pelo óbvio, de se aguardar que o órgão de cúpula, ou seja, o Supremo Tribunal Federal se manifeste, eventualmente, sobre a questão, eis que, como vem sendo destacado por doutrina cada vez mais freqüente, tal órgão, por sua peculiar função, reserva para si a decisão final acerca das ponderações ideológicas da interpretação do instituto em tela.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO

DO DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO

JURÍDICO PÁTRIO

No ordenamento jurídico pátrio (ao contrário do que se dá com outros sistemas constitucionais, como se exporá adiante) o direito à saúde não tem “status” de verdadeiro fundamental right (na acepção empregada por J. J. Canotilho, em seu conhecido curso de Direito Constitucional), o que, no entanto, não implicaria em dizer que não existiria base constitucional para a proteção de tal direito, mas, muito ao contrário, como se pretenderá demonstrar e se exporá nas linhas que se seguirão.

Isso porque se trata de um direito correlato e essencial à garantia de um direito fundamental, na medida em que malgrado esteja previsto de forma expressa como direito social no artigo 6º da Magna Carta, como sabido, sem o direito à saúde restará vulnerado o próprio direito à vida, este sim verdadeiro sobre-princípio constitucional defendido no caput da norma contida no artigo 5º...

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