Assessoria jurídica popular: experiência cearense

AutorAna Maria D'Ávila Lopes; Christianny Diógenes Maia
CargoDoutora e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará
Páginas197-215

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Introdução

A atuação jurídica tradicional, de cunho positivista e formalista, mostra-se incapaz de oferecer soluções satisfatórias e eficientes às atuais necessidades decorrentes dos novos tipos de conflitos sociais e dos novos sujeitos coletivos de Direito.12

Diante de tal realidade, surge a Assessoria Jurídica Popular (AJP), movimento jurídico recente que se coloca a serviço da luta das classes oprimidas por uma vida digna para todos, compreendendo o Direito como um instrumento de transformação social e emancipação humana.

A Assessoria Jurídica Popular vem sendo construída, sobretudo, na prática das entidades que advogam pela defesa e promoção dos direitos humanos e fundamentais dos novos sujeitos coletivos de Direito através dos projetos de extensão universitária.

Por se tratar de um movimento jurídico recente, a bibliografia sobre o tema é ainda escassa, tornando-se valiosos os aportes teóricos das próprias entidades que desenvolvem a Assessoria Jurídica Popular.

Nesse sentido, com o objetivo de contribuir para o amadurecimento do tema em questão, apresentaremos a experiência do Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU), projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), que desenvolve a prática da Assessoria Jurídica Popular.

Antes de focarmos o trabalho do CAJU, faremos considerações sobre o próprio movimento de Assessoria Jurídica Popular, bem como sobre as Page 198 especificidades do movimento no âmbito das universidades.

1 O direito alternativo e a assessoria jurídica popular

As tradicionais escolas filosóficas jusnaturalistas ou juspositivistas não respondem mais aos novos paradigmas que se apresentam ao estudo da Ciência Jurídica. Suplantando o Jusnaturalismo e o Juspostivismo, surge o Pós-positivismo, apresentando novos paradigmas à Ciência Jurídica, na qual o Direito Constitucional ocupa um espaço privilegiado.

Nesse sentido, Barroso (2003, p. 325-326) leciona que:

O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade.

O Jusnaturalismo faleceu com o apogeu do Juspositivismo, pois aquele não foi capaz de fornecer a segurança jurídica desejada. Por outro lado, este último foi incapaz de incorporar valores como justiça e dignidade da pessoa humana às normas, que friamente regiam a sociedade, distante da realidade social. Segundo, Noleto (1998, p. 72), "o formalismo positivista cumpriu a estranha tarefa de isolar o Direito dos conflitos sociais, arrancando-o da História".

As críticas às referidas correntes de pensamento foram tantas que não faltaram fundadores de escolas, teorias e movimentos contra a hegemonia jusnaturalista e juspositivista, a exemplo das escolas sociológicas, bem como da Teoria Crítica, do Direito Alternativo e do próprio movimento de Assessoria Jurídica Popular. Page 199

O positivismo foi incapaz de corresponder aos anseios da coletividade, mostrando-se conservador, elitista e injusto para a maioria da população. Contra esse pensamento científico hegemônico, surge a Teoria Crítica, que se fundamenta em aspectos antidogmáticos e emancipatórios. Conforme afirma Luz (2005, p. 128):

O pensamento crítico se traduz numa postura epistemológica, ética, política e teórico-prática, na qual a questão fundamental está na assunção de uma visão de mundo antidogmática, que possibilita um agir qualificado pela tomada de consciência dos sujeitos históricos de sua realidade humana, individual ou coletiva, para além da alienação (coisificação) de sua existência, proporcionada principalmente pelo mundo moderno capitalista.

Por sua vez, Wolkmer (2001, p. 9) ensina que:

A intenção da Teoria Crítica consiste em definir um projeto que possibilite a mudança da sociedade em função de um novo tipo de homem. Trata-se da emancipação do homem de sua condição de alienado, da sua reconciliação com a natureza não-repressora e com o processo histórico por ele moldado.

A Teoria Crítica do Direito denunciava a função ideológica do Direito e o fato de que, em nome de uma pretensa razão científica, encobrem-se as relações de poder (BARROSO, 2003, p. 279). Assim é falsa a ideia de neutralidade do Direito, que, na realidade, representa, muitas vezes, os interesses de grupos dominantes. Durante a 2ª Guerra Mundial, o Direito posto (estatal, formal) foi um grande aliado dos nazi-fascistas, que justificavam suas ações na letra lei. Isso demonstra o quanto pode ser perigoso identificar o Direito tão somente com a lei e o quanto o positivismo jurídico restrito se mostrou incapaz de responder aos conflitos sociais.

Barroso (2003, p. 281) explica que:

A teoria crítica do direito questiona: o caráter científico do direito, por faltar-lhe a pretendida objetividade que decorreria de uma irreal aplicação mecânica da norma ao fato, com base em princípios e conceitos genericamente válidos; a alegada neutralidade política, ao denunciar sua função ideológica de reforçador e reprodutor das relações sociais estabelecidas; a pureza científica, ao preconizar a interdisciplinariedade como instrumental indispensável à formação do saber jurídico. Trata-se, no entanto, de uma teoria crítica, e não de uma dogmática substitutiva ou alternativa. Page 200

O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) lembra ainda que, além de não ser neutro, o Direito não tem a objetividade proclamada pelo raciocínio lógico-formal de subsunção dos fatos à norma; portanto não é absoluto, exato, ao contrário, é a indeterminação dos conteúdos normativos uma marca do Direito, que pode dar margem a variadas interpretações, com diversas finalidades (que muitas vezes não é a justiça), de acordo com os interesses dos grupos conflitantes (BARROSO, 2003, p. 280).

A Teoria Crítica do Direito, nascida no seio das universidades, preocupou-se, acima de tudo, em desmistificar o fenômeno jurídico e em introduzir novos elementos valorativos na sua discussão (BARROSO, 2003, p. 282).

Principal expressão intelectual do pensamento crítico dialético no Brasil, Lyra Filho, criador da revista Direito e Avesso, fundou a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), que, nas palavras de Noleto (1998, p. 68):

Nasce na perspectiva de romper com os limites dogmáticos de um positivismo estreito e burocrático, assim como procura escapar às armadilhas do idealismo conservador contido nas teses jusnaturalistas, lançando novas luzes dialéticas sobre a busca de um fundamento na afirmação de que sua teoria crítica cumpre uma função de esclarecimento, posto que vem iluminar o debate jurídico revelando suas contradições e deformações ideológicas.

Lyra Filho (1980, p. 42) propôs uma ciência jurídica sem dogmas, analítica e critica ao mesmo tempo, sob o impulso da práxis libertadora. Em seu último trabalho, o autor apresentou uma proposta teórico-prática de uma filosofia jurídica denominada "humanismo dialético", que tinha como objetivo a refundamentação dos Direitos Humanos, conforme o processo concreto da libertação humana. O humanismo dialético, segundo Lyra Filho (1986, p. 295-299), estava ligado, antes de tudo, à práxis jurídica, na luta de povos, classes, grupos e indivíduos espoliados e vítimas da opressão.

Toda a base teórica difundida pelo pensamento crítico do Direito no Brasil se apresenta como alicerce para a prática da Assessoria Jurídica Popular, que também constitui um movimento jurídico crítico, pois, como afirmou Lyra Filho (1986, p. 299): "Somos todos uma bela mistura de espírito científico, filosófico, artístico, técnico, lúdico e até místico - ainda quando a fé não se volta para Deus, mas, para Page 201 uma libertação exclusivamente humana".

Percebemos, portanto, a importância da Teoria Crítica do Direito para o avanço de um entendimento menos dogmático da Ciência Jurídica e para a compreensão da necessidade de se construir um Direito mais humano, mais social e mais justo; que esteja em todo lugar, nas ruas, nas favelas, nos movimentos sociais, nas lutas, e não somente nas leis; que tenha como finalidade a Justiça, a justiça social, estando a serviço da maioria oprimida. Isso é o que propõe também o Direito Alternativo, que, inspirado na Teoria Crítica, avançou na construção de um Direito emancipatório, deslocando suas propostas do meio acadêmico para as ruas. A proposta do Direito Alternativo, embora se servindo da experiência crítica, procurou contribuir para a emergência de um novo Direito (CLÊVE, 1993, p. 46).

A Crítica Jurídica e o Direito Alternativo não são processos dissociados, ao contrário, são desencadeados de um mesmo processo teórico-prático que vai avançando, superando-se e redefinindo-se permanentemente. Então, na sequência histórica da Teoria Crítica, fundado nos mesmos pressupostos ideológicos, articulouse, em diversos países do mundo, entre as décadas de 1970 e de 1990, inclusive no Brasil, o movimento conhecido como Direito Alternativo.

O Direito Alternativo, em relação à maioria dos movimentos críticos anteriores, inovou, ao fazer uma opção pelos pobres - uma opção prática e não retórica como se via anteriormente. Tal vertente do pensamento jurídico propôs uma franca ruptura com...

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