Os atos de disposição processual – primeiras reflexões

AutorLeonardo Greco
CargoProfessor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Campos e da Universidade Gama Filho.
Páginas7-28

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1. Considerações gerais

A concepção publicística do processo relegou a segundo plano a reflexão acadêmica sobre os limites da autonomia da vontade das partes a respeito da multiplicidade de questões que podem ser suscitadas no processo ou, simplesmente, a considerá-la sempre dependente da aprovação ou homologação do juiz, vigilante guardião dos fins sociais e do interesse público a serem atingidos e preponderantemente tutelados.

Ninguém defendeu com mais veemência essa concepção entre nós do que BARBOSA MOREIRA, em mais de um estudo1, nos quais sempre criticou certas ondas privatizantes que, procurando associar o ativismo judicial a ideologias autoritárias, defenderam a adoção de um sistema processual em que preponderasse a autonomia da vontade das partes, como conseqüência de uma visão liberal e garantística do processo.

Apesar disso, o reconhecimento do processo civil como instrumento de tutela efetiva das situações de vantagem que a ordem jurídica confere aos particulares, decorrência da eficácia concreta dos direitos dos cidadãos característica do Estado Democrático contemporâneo, tem levado boa parte da doutrina e os sistemas processuais, em maior ou menor escala, a reconhecer às próprias partes certo poder de disposição em relação ao próprio processo e a muitos dos seus atos, reservando em grande parte à intervenção judicial um caráter subsidiário e assistencial2. E quando me refiro a esse poder de disposição, o faço não somente no sentido da prática de atos prejudiciais aos seus autores, mas de verdadeiros atos decisórios que vão determinar a marcha do processo e nele produzir efeitos jurídicos, ou,Page 8conforme a lição de CARNELUTTI, de atos mediante os quais "o agente regula, segundo o seu interesse, a composição ou o desenvolvimento do processo"3.

Não obstante esse poder das partes se contraponha ao poderes do juiz, não deve ser interpretado, de forma alguma, como uma tendência de privatização da relação processual, mas representa simplesmente a aceitação de que aquelas, como destinatárias da prestação jurisdicional, têm também interesse em influir na atividade-meio e, em certas circunstâncias, estão mais habilitadas do que o próprio julgador a adotar decisões sobre os seus rumos e a ditar providências em harmonia com os objetivos publicísticos do processo, consistentes em assegurar a paz social e a própria manutenção da ordem pública. Afinal, se o processo judicial não é apenas coisa das partes, são elas as destinatárias da tutela jurisdicional e são os seus interesses que a decisão judicial diretamente atinge, e, através deles, os seus fins últimos, embora remotos e abstratos, de tutela do interesse geral da coletividade, do bem comum e da paz social.

Entre esses atos de disposição, encontram-se as convenções das partes, assim entendidos todos os atos bilaterais praticados no curso do processo ou para nele produzirem efeitos, que dispõem sobre questões do processo, subtraindo-as da apreciação judicial ou condicionando o conteúdo de decisões judiciais subseqüentes. O que caracteriza as convenções processuais ou é a sede do ato – ato integrante da relação processual, praticado no processo -, ou é a sua finalidade de produzir efeitos em determinado processo, presente ou futuro. Muitos atos convencionais produzem efeitos em processos atuais ou futuros, embora não predispostos para esse fim. É o caso, por exemplo, do contrato de locação na ação de despejo. As partes contrataram a locação para reger a relação jurídica entre elas e não para servir de critério para o julgamento da procedência ou improcedência da ação de despejo. Apesar de utilizado pelo locador para fundamentar a ação de despejo por infração contratual, o contrato de locação não é uma convenção processual.

O conteúdo dos atos de disposição processual pode compor-se de questões substantivas – relativas ao direito material das partes – ou de questões tipicamente processuais – relativas a pressupostos processuais, impulso processual, admissão ou não de provas etc. Pouco importa. Umas e outras são questões do processo, suscitadas na relação processual, nela apreciadas e destinadas a produzir efeitos, sem prejuízo de eventualmente também produzirem efeitos fora do processo.

BARBOSA MOREIRA, num dos poucos estudos sobre o assunto na literatura brasileira, ressalta a disciplina lacunosa que os atos convencionais têm merecido, assim como, louvado em doutrina alienígena, distingue claramente as convenções daquelas declarações de vontade unilaterais cuja eficácia fica na dependência da concordância da parte contrária, como a desistência da ação4.

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CARNELUTTI, no Sistema, já diferenciava os acordos dos contratos ou convenções, aqueles como atos complexos, ou seja, atos bilaterais em que a declaração de vontade de cada parte preserva a sua autonomia em relação à da outra, enquanto estes últimos são atos compostos, nos quais nenhum dos elementos do ato constitui um ato jurídico singular5.

NICETO ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO refere-se às "partes que penetram na área do julgador", não se detendo na sua estrita qualidade de sujeitos que pedem, mas se transformam em sujeitos que decidem, como ocorre na prorrogação da competência, na fixação em certos casos do procedimento a ser observado, na transformação de um juízo em outro por acordo entre os litigantes ou mediante declaração unilateral de apenas uma das partes6.

Uma investigação sobre o novo alcance que vão assumindo os atos processuais das partes certamente exigirá uma revisão da doutrina dominante, segundo a qual não cabe perquirir o conteúdo da vontade ou da causa nesses atos, cujos efeitos são pré-determinados pela lei7.

De algum modo essa revisão já se iniciou, especialmente através da sistematização de CARNELUTTI, que defendeu a existência de verdadeiros negócios jurídicos processuais, especialmente em atos dispositivos das partes e a transcendência jurídica da vontade e da causa na teoria dos atos processuais8. Mais recentemente, SILVIA BARONA VILAR, na Espanha, propõe a distinção entre os atos das partes destinados a obter uma resolução judicial, como a proposição de uma prova, e os criadores de situações jurídicas, como a desistência, a renúncia, a transação, a indicação de endereço para receber intimações e o acordo entre as partes na designação do perito9.

Nestes primeiro estudo sobre os atos de disposição das partes serão, a princípio, ignoradas essas distinções, para nos concentrarmos especialmente no exame de quatro questões a respeito de um primeiro grupo de fenômenos processuais: os limites do poder de disposição das partes, o momento de sua eficácia, o seu regime jurídico processual ou de direito material e a revogabilidade dos atos em que é exercido. Em estudos subseqüentes tentaremos dar continuidade à análise dessas questões num rol mais numeroso e mais complexo de atos de disposição e, quiçá, identificar outras afinidades que sirvam para uma compreensão mais adequada da distribuição entre o juiz e as partes dos poderes de direção do processo civil. Mas, antes, impõe-se recordar alguns princípios e regras vigentes no Direito brasileiro que poderão servir de critérios para a análise projetada.

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A instauração do processo resulta em geral da iniciativa do autor (art. 262 do CPC), que individualiza a demanda através da chamada tríplice identidade, fixando o chamado objeto litigioso. Ao réu também incumbe definir as questões de direito material que possam ilidir o pedido do autor, ressalvadas as de ordem pública, que o próprio juiz pode suscitar (CPC, art. 303, inciso II). Os fatos geradores do direito material das partes, a que a lei se refere como fatos constitutivos, extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do autor (CPC, arts. 326), também se sujeitam, em princípio, ao ônus da sua afirmação pelas partes.

Quanto às questões propriamente processuais, cumpre recordar que a falta de condições da ação e de pressupostos processuais, de um modo geral, é matéria apreciável de ofício, pouca margem havendo para a disponibilidade das partes, constituindo exceções a argüição da incompetência relativa e a argüição do compromisso arbitral (CPC, arts. 114 e 301, § 4°). Ademais, ao juiz incumbem os deveres de impulsionar o processo (CPC, arts. 125 e 262) e de determinar de ofício a produção de todas as provas necessárias à formação do seu convencimento (art. 130)10, o que reserva à autonomia de vontade das partes pouco espaço para deliberações a respeito da marcha do procedimento e para a imposição de limitações probatórias ao juiz, apesar da expressa previsão legal de convenções sobre a distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único) e do chamado ônus subjetivo, que faz recair sobre a parte que não demonstrou os fatos que a ela interessam a conseqüência do julgamento desfavorável.

2. Limites

A definição dos limites entre os poderes do juiz e a autonomia das partes está diretamente vinculada a três fatores: a) à disponibilidade do próprio direito material posto em juízo; b) ao respeito ao equilíbrio entre as partes e à paridade de armas, para que uma delas, em razão de atos de disposição seus ou de seu adversário, não se beneficie de sua particular posição de vantagem em relação à outra quanto ao direito de acesso aos meios de ação e de defesa; e c) à preservação da observância dos princípios e garantias fundamentais do processo no Estado Democrático de Direito.

No processo judicial entre duas partes – e eu afasto, por ora, do meu exame as ações coletivas e...

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