Autonomia, bioética e direitos da personalidade

AutorDaisy Gogliano
Páginas107-127
AUTONOMIA, BIOÉTICA E
DIREITOS DA PERSONALIDADE
Daisy Gogliano(*)
I. AUTONOMIA
Em sentindo amplo, a palavra autonomia significa a condição de uma
pessoa, ou de um grupo de pessoas, se determinar por si mesmo, ou seja,
de se conduzir por suas próprias leis, por auto-regulamentação ou auto-re¬
gramento.
Por exemplo, na Biologia considera-se autônomo o animal capaz de
levar uma existência Independente e própria, em contraposição ao parasitis-
mo,
sem que implique uma Independência total e absoluta em face do meio
em que vive e do qual subsiste.
Felipe Rocha, professor de filosofia de Braga da Universidade Católica
Portuguesa, em interessante artigo "Educar para a Liberdade e Autonomia"(1),
tece importantes considerações a respeito do tema em seus aspectos filosó-
ficos,
observando que "a autonomia tem amplos e profundos laços com a
liberdade. Etimologicamente (autós = próprio; nomos = regra, lei), significa
ela a condição de uma pessoa, grupo ou coletividade maior que determi-
nem,
eles próprios, as regras a que se submetem".
No campo ético-moral, a autonomia "designa, por um lado, o controle
racional das pulsões instintivas (liberdade moral) e, por outro lado, ao
aceitação, sem consideração prévia, de regras de conduta provenientes de
uma entidade eterna"(2). Em suma, no seu entender, "liberdade e autonomia
o características do homem concreto e estão a serviço da realização dele.
Tiradas deste contexto, transformam-se em mitos, como aconteceu em-
culos passados!"(3)
O fato é que esse mito (ético-moral), que teve o seu apogeu com Kant
(1724-1804), ganhou relevo ao ser erigido como a essência da vontade, a
(*) Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade deo Paulo, doutora em
direito.
(1) Felipe Rocha, "Revista Portuguesa de Filosofia", 1993, n. 49, p. 104.
(2) Idem, Ibidem.
(3) Idem, Ibidem.
qual deve atuar com total independência de qualquer consideração alheia à
razão pura. Na teoria da autonomia da vontade, esta só será autônoma na
medida em que se determinar pela sua essência, pela própria lei que contém
em si, sem qualquer relação com os objetos a que se dirige. A vontade se
legitima na razão pura, na abstração, no racionalismo que tudo pode e tudo
governa. É o ser racional bastando-se a si próprio.
A filosofia de Kant penetrou em todos os ramos do conhecimento, in-
fluenciando, igualmente o Direito. O ilustre Professor Francisco dos Santos
Amaral Neto, em alentado e profundo estudo em homenagem ao Professor
Doutor Ferrer-Correia, publicado no Boletim da Faculdade de Direito da
Uni-
versidade de Coimbra(4), demonstra, com a clareza que lhe é peculiar, que o
dogma da vontade, assentado no individualismo e no contratualismo, "resul-
tante das concepções jusnaturalista e iluminista queo bem se positivaram
no Código de Napoleão e no B.G.B., nos quais a pessoa humana, com sua
liberdade e autonomia, era o centro por excelência do universo jurídico, e o
direito
civil,
'a garantia dos fins individuais relativos à família e aos bens',
foi-se reduzindo gradativamente a partir do começo do século e, acentuada-
mente,
com a Segunda Guerra Mundial, mercê duma progressiva interven-
ção do Estado, que limita a autonomia da vontade, quandoo a elimina
totalmente, às relações de microeconomia".
Francisco dos Santos Amaral Netoo deixa de chamar a atenção
sobre as diferenças entre a vontade psicológica e a vontade jurídica, sobre a
autonomia da vontade e autonomia privada, lembrando que a "vontade
psi-
cológica e a vontade jurídicao são, porém, coincidentes. Enquanto que a
psicologia conhece a vontade como 'tipo especial de tendência psíquica, as-
sociada a representação consciente de um fim e de meios eficientes para
realizá-lo', estudando-a no campo do ser, o direito aprecia-a no campo do
dever-ser, no campo da dogmática jurídica, reconhecendo-a como fator de
eficácia jurídica nos limites e na forma estabelecida pelo sistema normati-
vo"(5).
E acrescenta: "A esfera de liberdade de que o agente dispõe no âmbito
do direito privado chama-se autonomia, direito de reger-se por suas próprias
leis.
A autonomia da vontade é, portanto, o princípio de direito privado pelo
qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-
Ihe o conteúdo, a forma e os efeitos. Seu campo de aplicação é, por excelên-
cia,
o direito obrigacional, aquele em que o agente pode dispor como lhe
aprouver, salvo disposição cogente em contrário. E quando nos referimos
especificamente ao poder que o particular tem de estabelecer as regras jurí-
dicas de seu próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da
von-
tade,
autonomia privada; autonomia da vontade como manifestação de liber¬
(4) Francisco dos Santos Amaral Neto, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia,
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1989, p. 11.
(5) Idem, ibidem.

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