Autonomia reprodutiva da população trans: Discursos de Direitos Humanos, cisnormatividade e biopolítica/Reproductive autonomy of the trans population: Discourses of Human Rights, cisnormativity and biopolitic.

Autordo Nascimento, Rosane Bezerra

Introdução

Os direitos humanos são fundamentais para a fruição de uma vida digna tanto em âmbito individual quanto coletivo. Nesse ínterim, a dignidade humana é frequentemente evocada como o núcleo axiológico fundamental dos tratados internacionais e das Constituições nos Estados Democráticos de Direito que consideram tais direitos como inalienáveis. No entanto, Arendt (2012) afirma que esse sujeito emancipado e "abstrato", que leva em si mesmo a sua dignidade, contém um paradoxo. Os direitos são considerados inalienáveis porque se supõe que são independentes dos governos, porém, quando os indivíduos são excluídos da comunidade política, quando os direitos se tornam mais necessários e urgentes, eles--os direitos--se tornam inexequíveis, à revelia de seu status normativo de inalienabilidade.

Em uma visada da teoria crítica dos direitos humanos, as categorias abarcadas por eles possuem como característica serem um constructo contínuo, uma gama de garantias que aumenta a partir das necessidades que surgem em diferentes épocas. Assim, no decorrer da história, em virtude de lutas, ações e conquistas de grupos e movimentos sociais, eles se expandem, de modo que não precisam estar positivados para que existam ou sejam garantidos. Por outro lado, a positivação dos direitos humanos nem sempre é sinônimo de efetividade, havendo a necessidade de mobilizações contínuas para visibilizar assimetrias sociais e mostrar os desequilíbrios do poder na sociedade e seus impactos nas relações sociais, com a produção de desigualdades e discriminações estruturais.

A condição de vulnerabilidade de diversos grupos sociais impõe a dificuldade ou vedação de acesso aos bens e serviços essenciais, aos direitos e garantias que deveriam ser assegurados a todos aqueles significados dentro da categoria de "cidadão". Tal impeditivo leva pessoas vulneráveis a sofrerem material, social e psicologicamente os efeitos dessa exclusão. Nesse contexto, tais sujeitos reivindicam sua própria lei em forma de leis especiais e subjetivas do diferente, do vulnerável (MARQUES; MIRAGEM, 2014), que vêm ganhando destaque nas demandas de direitos humanos encampadas por inúmeros movimentos sociais ao longo do tempo. Entre esses grupos vulneráveis, ou melhor, vulnerabilizados pelas desigualdades, encontra-se a população LGBT (1), sigla validada pelo movimento social institucionalizado que visa a englobar grupos atrelados à diversidade sexual (lésbicas, gays, bissexuais, assexuais), bem como à diversidade de gênero (a exemplo das pessoas transexuais, travestis, intersexuais, não-binárias), além de demais sujeitos posicionados em dissidência para com as normatividades heterossexuais, cisgêneras e endosexuais que regem a sociedade brasileira.

Entre os sujeitos inseridos nessa população, as pessoas trans e travestis possuem direitos sistematicamente negados e sofrem profundamente os efeitos dessa exclusão (SERRA, 2016). No âmbito dos direitos civis, as barreiras para seu exercício refletiram-se, como um processo de violência estrutural e sistêmica de longa duração, na impossibilidade de mudança de nome civil e de gênero nos documentos oficiais sem a necessidade de passar por uma junta multidisciplinar de saúde (reconhecimento de sua condição de gênero patologizada), bem como por um processo judicial (judicialização de corpos trans e travestis como condição para sua existência perante o Estado) (2). Outro direito pouco debatido em relação à população trans (3) é o de gerar prole, ou seja, o exercício dos direitos reprodutivos conceptivos.

Diante desse cenário, o presente artigo tem como objetivo discutir a liberdade reprodutiva de pessoas trans e travestis segundo uma perspectiva crítica de direitos humanos, a partir da consideração dos efeitos políticos dos discursos (4) que circulam em normas jurídicas atinentes a essa gama de direitos. Assim, o que se questiona é se e em que medida o Plano Nacional de Promoção da Cidadania de Direitos de LGBT de 2009 garante a autonomia reprodutiva desses sujeitos. Para tanto, propomos uma trajetória de reflexão que passa por apresentar teorizações atreladas à noção de identidade de gênero enquanto categoria analítica e política transfeminista, argumentando em torno de seu potencial na construção de uma visada crítica dos direitos humanos. Em termos específicos, nosso campo de discussão focaliza os marcos de promoção de uma cidadania efetiva de pessoas trans e travestis em termos de direitos reprodutivos, considerando especialmente os regimes biopolíticos instaurados na imbricação entre normas, sujeitos e silêncios na questão discutida. Do ponto de vista metodológico, este trabalho está situado no âmbito da vertente teórico-metodológica, de base qualitativa, das ciências sociais aplicadas, especialmente na linha jurídico-teórica, por se aproximar da filosofia do direito e da teoria dos direitos humanos ao estudar conceitos, interpretação e aplicação de normas. Consequentemente, adotamos o tipo metodológico jurídico-exploratório, pois analisamos diversos aspectos sobre a temática. Valemo-nos, ainda, da técnica de pesquisa documental, obedecendo a um conjunto de critérios para análise de documentos históricos (averiguando-se a autenticidade, a credibilidade, a representatividade e o sentido) como elementos descritos por Scott (apud REGINATO, 2017).

Quanto à estruturação do artigo, o desenvolvimento está dividido em quatro partes. Na primeira delas, são discutidos conceitos relacionados às normas de gênero para demonstrar como a transexualidade é afetada por tensionar o que fora naturalizado como única vivência de gênero possível. Na segunda parte, é apontada a perspectiva contrahegemônica dos direitos humanos, baseada na teoria crítica. Em seguida, são abordados os direitos sexuais e reprodutivos: apresentam-se conceitos e normas e é realizada uma análise acerca do alcance desses direitos num contexto de diversidade de sujeitos. Por sua vez, a quarta parte traz uma análise do alcance das propostas referentes aos direitos reprodutivos de pessoas trans e travestis no Plano Nacional de Promoção e Cidadania e Direitos Humanos de LGBT de 2009 (PNCDH/LGBT-2009).

1 Identidade de gênero, cisnormatividade e biopolítica

Conforme consta na introdução dos Princípios de Yogyakarta (2006) (5), a identidade de gênero pode ser compreendida como a experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo, o que pode acarretar, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros, além de outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.

Tal definição valida uma noção de gênero que parece estar desatrelada dos efeitos limitadores de determinismos biológicos ou de essencialismos metafísicos categóricos, apontando, então, para o caráter sociocultural, histórico e ideológico daquilo que é reconhecido como um gênero em uma dada sociedade. Nesse sentido, conforme a teoria da performatividade de gênero proposta por Judith Butler em Problemas de Gênero (2016), sustentamos que gênero é o modo como nomeamos o efeito de práticas insistentes de significação reguladas por normas tácitas e relações de poder que produzem uma aparência de naturalidade e estabilidade graças à constante repetição de seus signos. Nas palavras da autora, "o gênero é [...] um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, uma classe natural do ser" (BUTLER, 2016, p. 69).

Nesse âmbito, conforme argumenta Bento (2006), não existe corpo livre de investimentos discursivos, uma vez que os corpos só são socialmente inteligíveis a partir de marcos culturais específicos. Assim, as vivências trans tornam explícito o caráter performativo de todas as experiências de gênero, enfatizando os conflitos ideológicos aí presentes, bem como posicionam esses sujeitos numa situação de dupla via: por um lado, de permanente negociação com as normas de gênero e, por outro, de desestabilização do caráter tácito dessas mesmas normas. Em certa medida, pode-se afirmar que as vivências trans evidenciam os discursos normalizadores sobre gênero.

Em meio aos processos de fratura produzidos pelas performances de gênero que desafiam a aparente coerência e estabilidade do gênero imposto, uma das formas de a cultura hegemônica buscar manter o status quo acerca do binarismo e da naturalização sobre os gêneros é a articulação entre discursos dotados de alto poder na vida social. Um exemplo dessa articulação é aquele encaixe entre as engrenagens dos discursos médicocientíficos e jurídicos (COACCI, 2018), os quais por muito tempo garantiram a consideração das pessoas trans sob o signo da patologia (6), relegando-as a uma zona de abjeção social que as destitui de sua legitimidade enquanto sujeitos socialmente viáveis. Em função desse mecanismo que opera nas mais diversas esferas da sociedade, de suas instituições e de seus saberes, parece-nos imprescindível reconhecer, de partida, que "a posição presente nos documentos oficiais de que os/as transexuais são 'transtornados' é uma ficção e desconstruí-la significa dar voz aos sujeitos que vivem a experiência e que [...] foram os grandes silenciados" (BENTO, 2006, p. 26).

Essa ficção reiterada pelos discursos que circulam/circulavam nos documentos oficiais que significam pessoas trans como transtornadas, adoecidas, destituídas de sua autonomia psíquica e moral está implicada nos modos de funcionamento do biopoder atrelados à normatividade cisgênera, a qual busca desautorizar os discursos e práticas que não servem para naturalizar a identidade de gênero hegemônica. Reconhecer a existência de uma normatividade cisgênera, que impõe a identidade de gênero como algo a-histórico, puramente biológico e imutável, coloca as identidades transgêneras e não cisgêneras em posições marginais e...

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