A autoridade nacional de proteção de dados (ANPD) elementos para uma estruturação independente e democrática na era da governança digital

AutorGabrielle Bezerra Sales Sarlet, Daniel Piñeiro Rodriguez
CargoAdvogada, graduada e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará- UFC/Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Procurador Federal (PGF/AGU)
Páginas217-253
Rev. direitos fundam. democ., v. 27, n. 3, p. 217-253, set./dez. 2022.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i32285
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD) E OS DESAFIOS
TECNOLÓGICOS: ALTERNATIVAS PARA UMA ESTRUTURAÇÃO RESPONSIVA
NA ERA DA GOVERNANÇA DIGITAL
THE NATIONAL DATA PROTECTION AUTHORITY (ANPD) AND THE
TECHNOLOGICAL CHALLENGES: ALTERNATIVES FOR A RESPONSIVE
STRUCTURE IN THE ERA OF DIGITAL GOVERNANCE
Gabrielle Bezerra Sales Sarlet
Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Hamburgo- Alemanha (2019) e
igualmente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
(2018). Doutora em Direito pela Universidade de Augsburg- Alemanha (2013).
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará- UFC (2002).
Especialização em Neurociências e Ciências do Comportamento (2020)
Pesquisadora visitante e bolsista do Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht - Hamburg- Alemanha (2018), Professora do curso de
graduação e no PPGD em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUCRS.
Daniel Piñeiro Rodriguez
Doutorando (2021) e Mestre (2010) pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Graduado em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
Atualmente, é professor da Disciplina "Direito Humano e Fundamental a Proteção
de Dados Pessoais ", no curso de Especialização "Segurança Digital, Governança
e Gestão de Dados" da PUC-RS em parceria com o UOL.
Resumo
O presente artigo tem por objetivo identificar os elemementos necessários à
estruturação independente e democrática da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD) em seu perfil jurídico definitivo, como autarquia em regime
especial, de modo que possa alcançar a autonomia técnica e decisória que lhe
atribuiu a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Valendo-se de pesquisa
documental e de achados sobre autoridades estrangeiras semelhantes, é
possível apontar, como resultado parcial dessa análise, a insuficiência de confiar
tal missão à sua recente separação formal da Administração Direta, sendo
possível ainda concluir que o sucesso da modernização estatal na Era Digital
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GABRIELLE BEZERRA SALES SARLET / DANIEL PIÑEIRO RODRIGUEZ
dependerá, em grande medida, de escolhas intertemporais aptas a direcionar a
ANPD rumo a uma estruturação atenta às inovações tecnológicas. Para tanto,
desponta como fator determinante a formação e capacitação continuada dos
servidores integrantes dos quadros da instituição, bem como possíveis convênios
a serem celebrados pela entidade, a exemplo das alternativas buscadas pelas
Cortes de Contas no campo da tecnologia da informação (TIC).
Palavras-chave: ANPD. Governança Digital. Proteção de dados pessoais. Virada
Digital.
Abstract
This article aims to identify the necessary elements for the independent and
democratic structuring of the National Data Protection Authority (ANPD) in its
definitive legal profile, as an autarchy under a special regime, so that it can
achieve the technical and decision-making autonomy that it was granted by the
General Law of Data Protection (LGPD). Drawing on documentary research and
findings on similar foreign authorities, it is possible to point out, as a partial result
of this analysis, the insufficiency of entrusting such a mission to its recent formal
separation from the Direct Administration, being also possible to conclude that the
success of the state modernization in the Digital Age will depend, to a large extent,
on intertemporal choices able to direct the ANPD towards a structure attentive to
technological innovations. To this end, the training and continuing education of the
institution's staff, as well as possible agreements to be signed by the entity, like
the alternatives sought by the Courts of Accounts in the field of information
technology (ICT), emerge as a determining factor.
Keywords: ANPD. Digital Governance. Personal Data Protection. Digital Turn.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em sua crônica “Os segredos”, publicada originalmente em 1973, Clarice Lispector
(1999, p. 463) revelou seu desconforto com um sentimento que parece novamente tocar as
margens do ideário coletivo brasileiro: o de estar sendo roubada de seu próprio tempo, de
sua própria época. A afirmação da autora anunciava a presença de segredos cuja
existência se fazia quase palpável, mas que tardavam a ser revelados à sociedade, talvez
por receio daqueles que, conhecedores da técnica e da ciência, viessem a violar as esferas
da sua privacidade.
Apesar do descompasso temporal que separa a contemporaneidade e esses
mesmos segredos causadores de mal-estar em Lispector, suas palavras emprestam luz
aos recentes desdobramentos jurídicos e sociais que decorrem das novas tecnologias da
informação. E a aceleração que disso decorre imprime na percepção do tempo, como efeito
colateral, uma crise de sentido1 (HAN, 2021, p. 13).
A liberdade de pensamento assume especial relevância nos processos decisórios
humanos, e o ato de pensar, por sua vez, exige silêncio – um hiato de não-observação do
mundo. Ocorre que a hiperexposição às infinitas novidades, organizadas em feeds de
1 A expressão “sentido” é aqui empregada como direcionamento rumo a uma conclusão (HAN, 2021, p. 13).
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ESAFIOS
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ECNOLÓGICOS
notícias que fazem prisioneiro o olhar humano, dificulta o distanciamento contemplativo
necessário à tomada de decisão livre e responsável e, de modo geral, à própria consciência
humana. Vive-se hoje a coação da vigilância e da interação inevitável, e ao indivíduo não
mais é dado concluir (HAN, 2021, p. 12-16). Imprime-se assim a ideia de uma docilidade e
obediência na aquisição do conhecimento que, em outro giro, expressa uma resignação no
que toca ao exercício pleno das capacidades cognitivas.
Essa mesma aceleração constante, imposta pela técnica, para além de interferir na
percepção do tempo – interrompendo o silêncio necessário à tomada de decisão consciente
–, altera igualmente a habitabilidade dos espaços. É o que se denota da popularização do
trabalho remoto – modalidade de labor que rompe a união essencial entre a presença física
e o fruto da ação humana2. Se antes o início e o fim de uma jornada laboral apresentavam
marcos espaciais rigorosamente claros, o avançar da tecnologia promoveu distorções que
hoje são percebidas como corriqueiras, sobrepondo intervenções no que afeta à expressão
máxima do privado3. O mundo exterior invade o interior, mesclando espacialmente dois
planos tradicionalmente apartados: o profano e o sagrado, que, na mesma medida,
confunde tudo sem a mediação apropriada.
Esse vertiginoso processo de achatamento do tempo e do espaço trazem reflexos
sociais importantes, levando à hiperexposição, à hiperaceleração e, assim, à exaustão
coletiva. O descanso não mais recompõe o corpo, e o tempo, cada vez mais acelerado, se
faz circular, esvaindo-se cada vez mais rapidamente. Disso deriva a impossibilidade de
encontrar um sentido, porque já não há mais tempo ou lugar fora de uma circularidade
infinita. E, como dito, sem parar – sem a construção de instantes de reflexão em um mar
de continuidade ritmado pelo avanço das sereias da tecnologia –, não há pensamento
possível em um cogito sem fim. Em razão disso, pode-se apontar para as alterações
circuitarias do cérebro humano em curso.
Trata-se de fenômeno atrelado à virada digital (digital turn) de que fala Dubois
(2017, p. 42-44) e que afetou todas as formas socializadas de comunicação imagética: a
planificação de pinturas, retratos, filmagens, textos e sons produzidos pelo humano em uma
mesma insígnia digital, indiferenciada quando transmitida por sinais de informação,
relativiza a ligação “genética” da fotografia com o seu “referente real”, trazendo consigo
2 A palavra “Remoto” deriva da expressão latina remotus-a-um, cuja polissemia expressa, dentre outros
sentidos, a ideia daquilo que está fora da nossa vista ou de nosso alcance.
3 Em latim, não por acaso, a expressão também designa os “Deuses domésticos entre os romanos” (CUNHA,
2010, p. 382).

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