Autoridade nacional de proteção de dados: natureza jurídica, consequências práticas e aspectos organizacionais segundo a LGPD e o Decreto 10.474/2020

AutorJosé Sérgio da Silva Cristóvam e Tatiana Meinhart Hahn
Páginas577-601
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AUTORIDADE NACIONAL
DE PROTEÇÃO DE DADOS:
NATUREZA JURÍDICA, CONSEQUÊNCIAS
PRÁTICAS E ASPECTOS ORGANIZACIONAIS
SEGUNDO A LGPD E O DECRETO 10.474/2020
José Sérgio da Silva Cristóvam
Tatiana Meinhart Hahn
1. INTRODUÇÃO
O direito à proteção de dados pessoais e a tutela da vida privada, tradicionais
temas do direito constitucional e civil, reivindicam espaço também no direito admi-
nistrativo contemporâneo. Os direitos da personalidade são protagonistas no vulcão
civilizatório descrito por Ulrich Beck, uma Sociedade da informação exposta às
questões do “manejo” tecnológico, científ‌ico e político (administração, descoberta,
integração, prevenção) sobre os riscos desses avanços.1 De modo que a promessa
normativa de segurança contra esses riscos pelo Estado precisa ser continuamente
construída por meio de (re)organizações de poder e das responsabilidades quanto
ao curso do desenvolvimento técnico-econômico.2
No Brasil, a entrada em vigor da maior parte dos dispositivos da Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (LGPD) em 18 de setembro de 20203 apresenta desaf‌ios
1. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2.
ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 24.
2. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2.
ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 28.
3. A Lei 13.709 foi publicada em 15/08/2018. Em sua redação original, o art. 65, sem distinção quanto aos
dispositivos, previa a vigência em 18 (dezoito meses). Contudo, em 27/12, foi editada a Medida Provisória
(MP) 869, mais tarde convertida na Lei 13.853, de 08/07/2019, com a cisão do art. 65 em dois incisos. Assim,
pela redação do art. 65 alterada pela MP 869, o inciso I previu que os arts. 55-A ao 55-L, o 58-A e o 58-B
entrariam em vigor no dia 28/12/2018, com previsões gerais para a ANPD, como será explicado no ponto
2 do texto. Já o inciso II do art. 65 determinou que a entrada em vigor dos demais dispositivos da LGPD
se daria em 24 meses da publicação, ou seja, em 16/08/2020. Com o período da pandemia do coronavírus
(Covid-19), o governo federal editou a MP 959, de 29/04/2020, e alterou (novamente) a redação do art.
65, inciso II, para postergar a vigência para 03/05/2021. Na sequência, em 10/06/2020, foi publicada a Lei
14.010, que, entre outras matérias, alterou mais uma vez o art. 65 para incluir o inciso I-A e postergar a
vigência dos art. 52, 53 e 54, quanto às sanções, para 01/08/2021. A celeuma em torno da vigência perdurou
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COMENTÁRIOS À LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS (LEI 13.709/2018)
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à matéria regulatória e uma grande expectativa quanto aos contornos futuros da
formação e das atividades da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
no controle do uso de dados pessoais pelo setor privado e pelo setor público.
Ao Estado incumbe a construção legislativa sobre quais são os usos de dados
pessoais que deturpam a proteção da privacidade e a intimidade do indivíduo,
bem como o controle das atividades para a sua efetivação. Dessa forma, o direito
administrativo, destinado ao estudo do agir público subordinado à concretização
dos direitos sociais e à busca da conf‌irmação dos direitos e liberdades individuais,4
tem na proteção de dados pessoais um tema desaf‌iador, porque coloca a ação estatal
como vigia e como vigiado constantes.
Nesse sentido, além da evidente conf‌iguração como agente de tratamento,
a ação estatal deve concretizar as atribuições inerentes à atividade regulatória na
proteção de dados pessoais, na edição de regulamentos, no controle e na repressão
a infrações, mas principalmente na condução de uma política nacional de imple-
mentação desse direito.
Em que pese a LGPD já f‌ixar paradigmas no tratamento dos dados pessoais
e da tutela da privacidade aplicáveis tanto à realidade digital quanto à analógica,
em muito delegou à ANPD a responsabilidade sobre os rumos dessa tutela jurídica
entre os diferentes setores da economia e do setor público. Por isso, o recorte deste
ensaio parte da problemática quanto às competências da ANPD na implementação
da cultura de privacidade informacional no Brasil, na condução dos agentes privados
e na supervisão de um mercado consumidor voraz de dados e do detentor histórico
e nato de informações, o Estado.
Nessa senda, o estudo propõe um levantamento funcional dessas atribuições
e far-se-á por meio da análise dos dispositivos do recente Decreto 10.474, de 26 de
agosto de 2020, o qual estruturou a ANPD e estabeleceu como esses dispositivos se
comunicam com conceitos doutrinários sobre regulação e proteção de dados.
Dividir-se-á, portanto, o estudo em três partes: 1. A primeira terá como esco-
po ref‌lexões e projeções acerca da atividade regulatória no tratamento de dados
pessoais no Brasil a partir de alguns modelos regulatórios e de tendências teóricas
na matéria; 2. A segunda analisará a alteração da natureza jurídica da ANPD e dis-
até 17/09/2020, quando a MP 959/2020 foi convertida na Lei 14.058/2020, sem referir em seus dispositivos
do art. 65. A par do tenso período por qual passou a comunidade jurídica frente ao caos normativo sobre
a vigência da LGPD, bem como do tratamento da LGPD meio a legislações sem qualquer relação temática
e das discussões (ainda em curso na doutrina) em torno da vigência, tem-se o dia 18/09/2020, publicação
no Diário Of‌icial da União (DOU) da Lei 14.058, como ponto de partida da LGPD. Sintetizando a vigência
na LGPD nesse momento: o art. 65, os art. 55-A a art. 55-L, art. 58-A e art. 58-B entraram em vigor em
28/12/2018; os art. 52 a 54 estão com vigência prevista para 01/08/2021; os demais dispositivos estão em
vigor desde 18/09/2020.
4. TÁCITO, Caio. Transformações do direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
v. 242, p. 151-158, 2005. p. 151.
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