Autotutela do acordo de acionistas. Novo regime estabelecido pela Lei 10.303/2001

AutorDaniel Moreira do Patrocínio
Páginas194-205

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I - Introdução

Dentre as modificações sofridas pela Lei das Sociedades por Ações, com o advento da Lei 10.303/2001, destaca-se a inclusão dos §§ 8 e 9ºno art. 118. Estes novos dispositivos legais cuidaram do instituto da autotutela ou auto-execução específica do acordo de acionistas.

Assim, no presente estudo, pretendemos analisar este mecanismo criado pelo legislador reformista de 2001, pelo qual se estabeleceu uma nova forma para se assegurar o cumprimento do acordo de acionistas.

O § 8º resultou na positivação de uma prática usualmente adotada pelas companhias, quando da realização dos conclaves e desde que os acordos já tivessem sido, em sua sede, arquivados. É que, mesmo antes da edição da Lei 10.303/2001, em razão do estabelecido no caputào art. 118, já se verificava a resistência do presidente da mesa em computar os votos que fossem feitos em desconformidade com o que fora anteriormente ajustado no acordo. Esta circunstância, no entanto, segundo a opinião de alguns juristas, não seria legal, pois o presidente da mesa, ao interpretar o acordo e decidir se o voto poderia ou não ser computado, acabava exercendo uma função jurisdicional que, ex vi do contido no art. P do CPC, seria uma atividade privativa dos órgãos do Judiciário. Com a inclusão do referido § 8º não há mais sentido na discussão quanto à legalidade deste procedimento.

Ademais, através deste novo instituto (autotutela), o convenente do acordo que se sentir prejudicado em razão do inadim-plemento da obrigação assumida pelo outro poderá, sem que seja necessário recorrer ao Judiciário (ou mesmo ao juízo arbitrai), promover a autotutela específica da convenção, pelo procedimento previsto no novo § 9ºdo art. 118. Esta modalidade de autotutela poderá ser implementada não só nos casos em que o convenente, presente em assembléia, exerça o direito de voto de forma contrária àquela ajustada, mas, também, nos casos em que o acionista se abstenha de participar do conclave. Pela redação do § 9-, o absenteísmo do acionista não obstaculiza a utilização da autotutela.

Como a seguir será melhor examinado, o novo § 9º cuida de uma espécie de voto por mandato, nas hipóteses em que se verificar a inobservância do ajuste de voto anteriormente ajustado.

Outro aspecto também concernente à autotutela do acordo reside no fato de que,

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pela redação dada pela Lei 10.303/2001, não só os acionistas convenentes estariam vinculados à convenção, mas, também, os membros do conselho de administração ou, na hipótese de inexistência deste órgão, os diretores eleitos por este grupo de acionistas. Esta circunstância trouxe grande perplexidade para alguns estudiosos, na medida em que, em tese, a nova norma não seria conciliável com o dever de independência de que cuida o § lº do art. 154 da Lei 6.404/ 1976.

Por se tratar de um novo instituto, divergências relevantes têm surgido na doutrina pátria. Para alguns, cuidou o legislador reformista de um importante avanço em busca da efetividade dos acordos de voto. Para outros, melhor teria sido que os §§ 8º e tivessem sido vetados. Assim, longe de pretendermos esgotar a discussão, desejamos provocar o debate acerca da sistemática da autotutela introduzida pela Lei 10.303/2001. Vejamos.

II - Autotutela - Considerações gerais

Como sabemos, visando assegurar a paz social, o Estado avocou para si a competência exclusiva para a solução dos conflitos sociais, sendo, inclusive, vedado o exercício arbitrário das próprias razões.

Não é por outra razão que o Código Repressivo considera típica a conduta pela qual o particular pretenda "fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite" (art. 345). Semelhante tratamento legal, dirigido às autoridades, também foi previsto no art. 350 do mesmo Código Penal, que dispõe que praticará o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder quem "ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder".

Note-se, por outro lado, que em ambos os dispositivos há previsão expressa quanto à possibilidade da autotutela desde que prevista em lei. Neste ponto ousamos refutar o argumento que era defendido pelo

Professor Celso Barbi Filho, o qual sustentava a impossibilidade da autotutela do acordo de acionistas. O saudoso Mestre, ao comentar o projeto que resultou na edição da Lei 10.303/2001, afirmou que "esse mecanismo, de autêntica execução específica privada, subverte perigosamente a tutela jurisdicional necessária a se aferir o efetivo direito das partes do acordo, devendo-se avaliar com cautela sua adoção irrestrita, tal como proposta no projeto".1

Sobre o tema, Modesto Carvalhosa2 leciona o seguinte:

"O regime de autotutela insere-se no universo dos direitos pessoais relativos, que permitem ao sujeito de direito exigir o cumprimento do dever legal ou o adimplemento do contrato.

"Trata-se de um direito subjetivo, que outorga legitimidade jurídica para o sujeito diretamente exigir ação ou omissão de pessoas certas e determinadas.

"No âmbito dos direitos subjetivos pessoais relativos encontram-se os de proteção, ou seja, os que permitem o efetivo e concreto exercício dos direitos do seu titular."

Mais adiante, cita o Mestre alguns exemplos de autotutela previstos em nosso ordenamento: "E, não obstante a excepcio-nalidade de sua utilização como modo corrente de satisfação de pretensões, há previsão legal de algumas dessas exceções, como o direito de retenção (CC de 2002, arts. 578, 644 e 1.219, correspondentes aos arts. 1.199,1.279,516 etc. do CC de 1916); des-forço imediato nas possessórias (CC de 2002, art. 1.210, § lº, correspondente ao art. 502 dp CC de 1916); o penhor legal (CC de 2002, art. 1.467, correspondente ao art. 776 do CC de 1916); o direito de cortar raízes e ramos de árvores limítrofes que ultrapassem a extrema do prédio (CC de

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2002, art. 1.283, correspondente ao art. 558 do CC de 1916); a auto-executoriedade das decisões administrativas; o poder de efetuar prisões em flagrante (CPP, art. 301) e, como contraponto, a legítima defesa ou o estado de necessidade (CP, arts. 24 e 25; CC de 2002, arts. 188, 929 e 930, correspondentes aos arts. 160, 1.519 e 1.520 do CC de 1916); e o direito de não cumprir obrigação, assumida em contrato bilateral, quando a outra parte não cumpre a sua (CC de 2002, arts. 476 e 477, correspondentes ao art. 1.092 do CC de 1916)".34

Ari Possidonio Beltran, em estudo dedicado à análise da autotutela nas relações do trabalho,5 relata-nos a doutrina de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo (Processo, Autocomposición & Autodefesa, México, Unam, 1970), que há muito já havia enfrentado o tema. Para Castillo, "produzido o litígio entre duas esferas contrapostas de interesses, este deverá ser solucionado por obra dos próprios litigantes ou por decisão imperativa de um terceiro". Argumenta que a solução "parcial" (o termo é usado em oposição a "imparcial" e não a "total") do litígio oferece duas alternativas: ou um dos litigantes concorda com o sacrifício de seu próprio interesse, ou, ao contrário, impõe o sacrifício do interesse do outro. No primeiro caso, usando a terminologia de Car-nelutti, menciona a "autocomposição", ao passo que, no segundo, a hipótese é a da "autodefesa".

Ainda segundo Beltran, para Castillo a "idéia de que o sacrifício consentido (autocomposição), ou imposto (autodefesa), pode ser tanto unilateral, como na renúncia ou na legítima defesa, quanto bilateral, como na transação ou no duelo, respectivamente. A grande diferença entre elas decorre do impulso subjetivo que as determina, o que permite caracterizar como 'altruísta5 ecomo 'egoísta', respectivamente, os dois subtipos em que se divide a solução parcial dos litígios".6

"A autodefesa, que combina a parcialidade e o egoísmo, aparece desde o primeiro momento como uma solução deficiente e perigosa em grau superlativo, em conseqüência do que, de forma explícita, os ordenamentos jurídicos dos Estados merecedores deste nome a proíbam como regra, ainda que a consintam em situações excepcionais, e apesar de ser necessário um processo posterior, precisamente para declarar a licitude da mesma no caso concreto."7

A seguinte classificação da autodefesa foi elaborada por Castillo:

  1. a autodefesa em sentido estrito: como réplica a um ataque;

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  2. o exercício pessoal ou direto de um direito subjetivo, sem que seu titular haja sofrido prévio ataque: o exercício de um direito, o estado de necessidade, e figuras de menor relevo, como a perseguição de abelhas ou o corte de raízes;

  3. o exercício de faculdades atribuídas ao mando para fazer frente a situações de exceção: é o caso da manutenção da disciplina pelos militares superiores, por exemplo;

  4. o exercício de uma "potestade" por um dos sujeitos em litígio: o pátrio poder, autoridade marital etc.;

  5. o combate entre partes que confiam na força e não na razão para a decisão de suas pendências: o duelo no nível individual e a guerra no nível internacional;

  6. a coação sobre a outra parte para lograr impor a prevalência dos próprios interesses: tal grupo entrelaça-se com os referidos nos itens "b" e "e" e ao qual pertencem numerosos expedientes da luta social entre capital e trabalho.8

    Quanto ao reconhecimento pelo legislador, a autodefesa pode ser lícita ou autorizada (legítima defesa), tolerada (o duelo ém alguns países) e proibida (com dispositivos explícitos ou implícitos, proibições específicas etc.).9

    Percebe-se, portanto, que a autotutela está presente em diversos ramos do direito. Contudo, no presente estudo, pretendemos analisar o instituto da forma que foi introduzido na Lei de Sociedades Anônimas, através da reforma operada pela Lei 10.303/2001. Vejamos.

III - Art 118, § 8º

O art. 8º, ora...

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