O aviso de sinistro no Direito Brasileiro - existe um 'princípio do prejuízo'? A insubsistência do Enunciado 229 do STJ e a exegese do art. 771 do Código Civil de 2002 em consonância com o princípio da boa-fé objetiva

AutorDennys Zimmermann
Páginas44-68

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Introdução

Com o advento do novo Código Civil, a disciplina do contrato de seguro sofreu sensíveis modificações que, dadas a jovia-lidade e a amplitude temática da matéria, até o momento ainda não foram submetidas a uma cuidadosa vivisseção por parte da doutrina. Certo, porém, é que nem todas essas alterações são dignas de encomios. Antes pelo contrário, no que toca à disciplina do contrato de seguro, um breve passar de olhos já é o suficiente para evidenciar que o tratamento dispensado pelo novo Código Civil a alguns dos pontos mais controvertidos no âmbito do negócio securi-tário retrocedeu em demasia comparativamente aos avanços verificados na jurisprudência especialmente após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor.

Em particular, questão que sempre se afigurou tormentosa no nosso Direito, fon- te de inesgotáveis debates que a final culminaram com a edição do Enunciado 229 da súmula da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, dizia respeito à conduta do Segurado após a ocorrência do sinistro e, mais especificamente, à disciplina da prescrição e da decadência no contrato de seguro. Ao cabo de acaloradas discussões, a Corte Infraconstitucional proclamou que o prazo prescricional da "ação" (rectius: pretensão) do Segurado contra o Segurador visando ao recebimento de indenização decorrente de contrato de seguro principiaria a correr da data de ocorrência do sinistro, suspendendo-se com a entrega do aviso de sinistro pelo Segurado ao Segurador e retomando seu curso pelo tempo fal-tante a partir da ciência inequívoca da negativa de cobertura securitária.1 Ademais,

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em relação à antinomia aparentemente existente entre o Código Civil e o estatuto consumerista no que respeita à definição de qual o prazo prescricional da pretensão do Segurado contra o Segurador, aquela Corte pontificou que, quando tal pretensão estiver direcionada ao recebimento da importância prevista no contrato, e não à responsabilização do Segurador por evento identificado como "fato do serviço", o prazo prescricional correspondente será regido não pelo preceito do art. 27 do Código de Defesa do Consumidor, mas sim pela disposição do art. 178, § 6-,.II do Código Civil de 1916, que estabelece ser o mesmo anual.2

A edição do Enunciado 229 rendeu ensejo à proliferação de decisões judiciais que, de maneira irrefletida, tomaram-no como seu fundamento sem submetê-lo a qualquer análise criteriosa do seu conteú-" do, o qual, numa leitura mais atenta, se mostra repleto de contradições. Além disso, sua aplicação acabou por ofuscar o preceito veiculado pelo art. 1.457 do Código Civil revogado,3 deixado de lado que foi em razão do maior vulto que a discussão acerca do termo a quo do prazo prescricional da pretensão do Segurado em face do Segurador ganhou nos Tribunais.

Do mesmo modo, tão lastimável quanto o menoscabo da jurisprudência pelo art. 1.457 do Código Civil revogado foi a malversação do instituto da prescrição, cujo prazo, nos termos do Enunciado 229 do STJ, principiaria a correr, no âmbito do contrato de seguro, a partir da data de ocorrência do sinistro, e não da ciência da negativa da Seguradora ao pagamento da indenização acordada. Ora, a identificação do termo a quo do prazo prescricional com a data de ocorrência do sinistro contraria frontal-mente o posicionamento hodiernamente consagrado na doutrina, segundo o qual a prescrição atinge não o direito,4 como pro-pugnavam alguns estudiosos, nem tampouco a ação, como apregoavam outros, mas sim a pretensão,5 isto é, em apertada síntese, "o poder de exigir de outrem o cumprimento de uma prestação".6

A Lei 10.406/2002 (o novo Código Civil), ao cristalizar o entendimento doutrinário de que a prescrição atinge a pretensão (e não o direito subjetivo, nem tampouco o direito de ação), impingindo à regra anteriormente veiculada no art. 1.457 uma singela - mas aparentemente significativa - modificação, pôs em xeque a subsistência do Enunciado 229 do STJ e recolocou em debate a relevância do "aviso de sinistro" no ordenamento jurídico positivo brasileiro. De um lado, porque a aplicação conjuntado art. 1897 e do art. 206, § Iº, II, alínea ¿?x do novo Código conduz à inar-redável conclusão de que o prazo prescricional da pretensão do Segurado em face do Segurador somente tem início com a lesão do direito subjetivo - lesão esta que, por óbvio, só se concretiza com a ciência inequívoca da negativa de pagamento da

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indenização securitária. De outro, porque o art. 771 do novo Codex, a que corresponde o art. 1.457 do estatuto revogado, excluiu a ressalva a que a exoneração da obrigação do Segurador condiciona-se à prova da existência de prejuízo decorrente do atraso no aviso de sinistro, suscitando dúvida (a nosso ver, infundada) sobre se o simples retardo na comunicação do sinistro pelo Segurado, independentemente de outras considerações acerca das suas conseqüências adversas para o Segurador, doravante seria suficiente para, de per se, ensejar a perda do direito à indenização securitária.

Sem embargo, a solução preconizada pela jurisprudência do STJ pecou pela flagrante ausência de maior apuro técnico-dogmático, na medida em que, ao fazer coincidir o início do prazo prescricional com o implemento do risco contra o qual se contrata o seguro, menosprezou os traços distintivos que estremam os institutos jurídicos da prescrição e da decadência, olvidando-se que o implemento do risco não é o fato gerador da pretensão, senão a condido iuris que torna exigível a prestação secundária (e eventual) contratada ao Segurador. De tal arte, em que pese o teor (altamente criticável!) do enunciado ora em exame, dúvida não nos parece haver de que o prazo prescricional da pretensão do Segurado nasce não da ocorrência do sinistro, como erroneamente sufragado pela Corte Superior, mas sim da ciência inequívoca da negativa de cobertura pelo Segurador, este o fato que traduz a efetiva lesão do direito subjetivo do Segurado.9

A conclusão acima expendida de nenhuma maneira implica dizer que, nascendo a pretensão (e, conseqüentemente, o prazo prescricional) somente da ciência da negativa inequívoca de cobertura, seria consentido ao Segurado permanecer perpetuamente em silêncio, guardando a ocorrência do evento egoisticamente para si e supri-mindo-a propositalmente do conhecimento do Segurador, de molde a com isto obstar o início da regulação do sinistro e a apreciação do pagamento da indenização securitária.10 Decerto que não! Uma tal inferencia importaria em admitir que o Segurador fosse mantido em situação de absoluta ignorância acerca do implemento do risco coberto na apólice, circunstância que, como é curial, sé afigura potencialmente nociva, para a apuração das causas de ocorrência do sinistro e para a constituição e a manutenção, pelo Segurador, das provisões e reservas técnicas necessárias ao cumprimento da sua obrigação de garantia.

Por tal razão é que consideramos que, em caso de demora na comunicação do sinistro pelo Segurado, cabe ao Segurador, em tese, invocar a regra veiculada no art. 771 do novo Código, que determina que tal comunicação seja feita pelo Segurado "tão logo" este saiba da sua ocorrência, sob pena de perda do direito à indenização securitária contratada. Porém, a nosso ver, tal alegação só deve ser aceita caso se faça acompanhar de prova cabal do prejuízo imposto ao Segurador pela desidia do Segurado! Não obstante a supressão, no art. 771 do novo diploma civilístico, ,da restrição consignada no parágrafo único do art. 1.457 do estatuto revogado, entendemos que a exoneração da obrigação do Segurador de nenhuma maneira deixou de prescindir da

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comprovação da ocorrência de prejuízo resultante da demora na comunicação do sinistro pelo Segurado.

Esta é a conclusão que se alvitra a partir da incidência à espécie dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé objetiva, este último vigorante nas relações de consumo desde a edição do Código de Defesa do Consumidor (embora encontremos seu fundamento na Constituição de 1988) e estendida à generalidade das relações jurídi-co-contratuais com o novel estatuto civi-lístico.

O termo "a quo" do prazo prescricional no Contrato de Seguro - Insubsistência do Enunciado 229 do STJ

Por razões óbvias, escapa aos contornos estreitos deste trabalho uma digressão teórica mais profunda acerca dos institutos da prescrição e da decadência e sua evolução na ordem jurídica brasileira. De há muito a questão divide os juristas, não tendo sido poucos os que se perderam nas inúmeras tentativas de se revesti-la de certo "lustre" científico, enredados que foram, entre outros fatores, pelo tratamento extremamente assistemático dispensado à matéria pelo legislador civilista de 1916.11

O Código Civil de 2002, numa tentativa de pôr termo à antiga controvérsia, proclamou que a prescrição não atinge o direito nem a ação, mas a pretensão, ou seja, o poder de exigir de outrem o cumprimento de determinada prestação. A exigibilidade é o conteúdo da pretensão, que, embora tenha em comum com o direito subjetivo o fato de configurarem ambos espécies de situações jurídicas subjetivas, com ele não se confunde. De fato, com o advento da prescrição, remanesce plenamente incólume o núcleo do direito subjetivo, apenas restando atenuada a eficácia da pretensão, e tanto assim o é que, conforme dispõe o art. 882 do novo Código, o pagamento de "dívida prescrita" não autoriza a repetição do indébito em favor de quem a pagou.

Ao pontificar que a pretensão nasce da violação do direito subjetivo, o art. 189 do novo Código Civil salvaguardou a autonomia entre ambos os institutos (conquanto não se possa deixar de assinalar que esse preceito se afigura insuficiente para disciplinar de maneira exaustiva todos os aspectos do fato prescricional), estremando o "direito à prestação" do "poder de exigir o seu cumprimento". Especificamente no que tange ao contrato de seguro, essa distinção - a final consagrada pelo ordenamento...

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