Azedo Judicial: Discursos e pr

AutorFernandes, Luciana Costa
  1. Introdução

    Esse texto surgiu a partir de um incômodo: no início de 2020, em uma consulta de rotina à jurisprudência do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, nos deparamos - dentre as sentenças destacadas pelo próprio órgão em seu sítio na internet - com uma decisão na qual o(a) juiz(a) deliberou pela necessidade de apenamento de um homem negro sob o fundamento de que o réu teria agido de forma racista ao se referir à sua vizinha branca como "branquela azeda". Malgrado o caso se tratasse de uma hipótese de injúria preconceituosa, em sua fundamentação o(a) magistrado(a) declarou: "inegável ser o racismo uma prática de mão dupla".

    Esse artigo é, portanto, uma tentativa de compreender como se pavimenta a estrada que leva ao que chamamos de naturalização do absurdo, potencializado pelo destaque dado ao caso pela própria instituição, que incluiu a sentença entre aquelas que, nos dizeres do TJRJ, podem "oferecer subsídios que auxiliem os consulentes em suas atividades profissionais".

    Metodologicamente, a revisão bibliográfica dos temas foi feita quando já conhecido o caso que será explorado, de modo que a teoria e o estudo empírico estão relacionados desde o início. O estudo do caso nos permitiu instrumentalizar os questionamentos centrais deste artigo quais sejam: como o direito e o judiciário se inserem nos processos de construção de subalternização, como este poder atualiza as estratégias de segregação racial e como o processamento de crimes que discutem discriminações raciais atua para a relegitimação do sistema penal em sua totalidade.

    Epistemologicamente, foi mobilizado uma gama diversa de autore(a)s, nem todos póscoloniais em sua essência. Mas a chave heurística deste artigo é o conceito de colonialidade, aqui compreendida como uma "produção específica de subalternidade enraizada na história" (CAHEN, 2018).

    Partimos da inexorável relação entre os processos de subalternização e o capitalismo hodierno, conforme uma perspectiva materialista da colonialidade revela. Tomamos como pressuposto que, diante da pressão dos movimentos sociais das diferentes identidades políticas, o estrato hegemônico precisou refinar sua lógica de opressão, concedendo espaço (controlado) às demandas que surgiam (1).

    No Brasil, a produção de subalternidades está intimamente relacionada ao mito da democracia racial que seria resultante da miscigenação. O que se evidencia é a tentativa de reduzir o racismo a um problema meramente comportamental, de falha de caráter de um indivíduo ou grupo de indivíduos, em um contínuo apagamento da raça como elemento estruturante das opressões no contexto de relações sociais. Reduzindo-se a raça a uma mera questão identitária, a retórica do direito penal exsurge como instrumento hábil e eficaz para o combate do racismo, nesse ponto reduzido à ideia de preconceito racial.

    É possível também observar que, desde a Constituição de 1934, há uma preocupação institucional em retratar o Brasil como uma nação racialmente democrática. Demonstramos então como a interpretação que sinônima racismo e preconceito, apagando a dinâmica relacional e hierárquica de uma raça sobre a outra, pavimenta o caminho para a tese do "racismo reverso" e como o Poder Judiciário se insere nessa engenhosa articulação que instrumentaliza o direito (em especial o direito penal) para manter a hegemonia de uma elite branca.

    Nesse sentido, é fundamental refletir sobre a situação conjuntural da magistratura brasileira, desde a sua fundação colonial, na articulação dos interesses imperiais com os aparatos de burocracia do Estado, até as suas apresentações mais atualizadas, com o protagonismo alarmante que vem assumindo na cena política neoconservadora que vivemos. Processos que deixam marcados os contínuos, ou seja, a forma como desde a origem da repartição de poderes do Estado se garante, através de respostas judiciais, os interesses das elites brancas e burguesas, especialmente a partir do maquinário genocida oferecido pelo sistema penal. Assim, é pressuposto e efeito da análise sistêmica do caso estudado implicar a magistratura na manutenção de vantagens e privilégios não nominados, especialmente em processos discursados como oposto - ou seja, como alinhados com a luta antirracista.

    Por fim, dissecamos como os argumentos até aqui mobilizados se materializam não apenas na sentença do(a) magistrado(a) mas em todo o caso e como indício de uma racionalidade que se propala institucionalmente, destacando-se a estratégica falta de visão sobre o racismo como uma necessária relação de poder ubiquamente ligada à supremacia branca e da qual o judiciário historicamente é integrante.

  2. Formações Nacionais de Alteridade, Direito e a astúcia do Capitalismo

    Há um entendimento - senão predominante, bastante difundido no universo além dos círculos acadêmicos - de que o racismo é apenas um problema de ordem intersubjetiva, consequência de uma "falha de caráter" ou de "má-educação" do sujeito racista. Ou seja: estaríamos diante de um problema meramente comportamental, de ordem moral, um tipo de preconceito baseado na raça, de modo que os termos racismo e preconceito racial passam a ser compreendidos como sinônimos.

    Esta visão, que tende ao apagamento do aspecto institucional e estrutural do racismo, reduzindo-o à dimensão intersubjetiva, não se dá por acaso: ela atende - desde que o determinismo biológico que informava o racismo até o século XX foi contestado pela medicina mais moderna - aos interesses do capitalismo hodierno e da classe hegemônica. Por isso, para compreender a articulação entre raça, direito e Estado, em toda sua densidade, precisamos olhar para as bases sobre a qual esta relação se estabelece.

    É a ação direta do capital (2), em sua constante capacidade/necessidade de se reinventar, que nos dá a chave para compreender porque a luta antirracista vem sendo direcionada pelo Estado para "ações contra preconceitos nos comportamentos individuais e na transformação de políticas públicas em compensatórias ou de promoção social" (OLIVEIRA, 2016, p.36), desvinculando-a, o quanto possível, das lutas por justiça social. Assim, o racismo--essencial em uma sociedade capitalista (3) - passa pelo que o Prof. Silvio Almeida (2019, p.72), em diálogo com o pensamento de Franz Fanon, chama de refinamento: o "incremento das técnicas de exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência e opressão, dentre as quais o racismo". O racismo vulgar é, então, rechaçado, ocultando-se suas determinações econômicas e políticas.

    Quando o racismo é reduzido à sua dimensão intersubjetiva, o sujeito racista é visto como causa (e não como efeito) das instituições e estrutura racistas. Esta visão leva à conclusão (equivocada) de que o racismo poderia, eficazmente, ser combatido apenas pela legislação e pela retórica dos direitos humanos (enquanto se deixa intacta a estrutura que é, de fato, sua causa). Entretanto, uma concepção estrutural do racismo demanda compreender que este direito a ter direitos (LEFORD, 1991) não foi e continua não sendo bastante, em especial quando percebemos que uma das formas pelas quais o capitalismo se refaz e se perpetua consiste justamente em absorver as demandas por representação (4) das diferentes identidades políticas (FRASER, 2019).

    Junto com a materialidade, é a territorialidade das relações sociais que nos permite compreender como a inscrição por mais direitos (fruto de disputas institucionais entre os grupos sociais alijados e o grupo hegemônico) acaba por ser reiteradamente esvaziada em uma sociedade de genealogia racista como a sociedade brasileira, uma vez que o processo histórico de produção das identidades políticas não pode ser universalizado. É dizer: cada Nação desenvolve seu próprio processo de outrificação, produzindo diferenças que foram e continuam sendo funcionais às elites. No Brasil, o mito da democracia racial age reforçando a tese de que o racismo é um desvio comportamental de um indivíduo (ou de um grupo isolado) em uma sociedade miscigenada e que a eventual segregação social dos grupos racializados está ligada à classe, mas não à raça.

    Nesse processo--de "formações nacionais de alteridade" (5)--o Estado e o direito desempenham um papel importante na (constante) construção das narrativas essenciais à manutenção da estrutura racista, administrando as tensões em prol de uma propagada "unidade do povo brasileiro". Assim, hodiernamente, no Brasil, nacionalismo, Estadomínimo, neoliberalismo, pós-política (6) e controle da atuação dos movimentos sociais (através, inclusive, do direito) se mesclam para que a hegemonia da elite branca seja sub-repticiamente mantida enquanto, por um lado, se declara a igualdade racial e, por outro lado, o racismo possa seguir alimentando as estruturas capitalistas e sua classe hegemônica. Olhar para a sequência dos textos normativos das Constituições brasileiras nos ajuda a visualizar esse processo que reduz a igualdade a um ideal (7) sem, contudo, alçá-la à necessária concretude.

    Desde a Constituição da segunda república, notamos esta preocupação, institucionalizada, em se afirmar o Brasil como uma nação em que todos são iguais perante a lei. A breve Constituição Federal de 1934 foi a primeira das constituições brasileiras a se referir expressamente à igualdade racial, declarando a proibição de privilégios por "motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas". Todavia, ao fazê-lo, também atribuiu à União, aos Estados e aos Municípios, a incumbência de "promover a educação eugênica" (art.138, b da Constituição de 1934), ecoando a forte influência do movimento eugenista-racista brasileiro da primeira metade do século XX (8).

    A Constituição Federal outorgada em 1937 - elaborada por Francisco Campos e amplamente apoiada por Plínio Salgado e o movimento integralista brasileiro - retrocedeu à lacônica previsão de que "todos são iguais perante a lei" (9). A Constituição do...

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