O beato rabula: tracos de um imaginario juridico no Arraial de Canudos/The devotee self-taught lawyer: Traces of a legal Imaginary in the Camp of Canudos.

AutorGardoni, Rennan Klingelfus

Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome nem a doutrina. Já este mistério é poesia. Machado de Assis (1) 1) Introdução (2,3)

O presente trabalho procura compreender, sem qualquer pretensão de totalidade, traços da cultura jurídica brasileira na transição entre o Império e a República. Momento em que se intensificavam as tentativas de modernização do direito brasileiro, apesar da permanência ou resistência de fortes elementos de uma tradição jurídica pré-moderna. Ainda que se veja na proclamação da República um momento de ruptura na história do Brasil, um olhar historiográfico jurídico mais cuidadoso aponta igualmente para a presença de significativas continuidades. A estrutura jurídica do país vinha de uma longa tradição fundada em padrões pré-modernos que não desapareceram instantaneamente, ao contrário, foram objeto de uma lenta, complexa e muitas vezes contraditória transformação.

Com efeito, fez-se incidir as lentes histórico-jurídicas sobre um evento notável da República Velha: o Arraial de Canudos. Este acontecimento foi um dos mais importantes movimentos populares do Brasil e certamente um dos mais abordados pela historiografia. Todavia, não são encontrados muitos estudos focados nos aspectos jurídicos que envolvem o episódio. Talvez, porque ainda haja uma dificuldade de aproximação entre a historiografia social e o direito, não obstante este seja um dos importantes "tecidos constitutivos" (4) de uma sociedade.

Neste estudo, busca-se compreender o passado do direito como fenômeno complexo, com uma lógica interna própria, ainda que intrinsecamente relacionado com o contexto social, político, cultural e econômico em que estava inserido. Dirige-se a perspectiva para o Arraial de Canudos, percebendo que o movimento revela indícios de permanência de um pluralismo jurídico no Brasil do período e de uma forma muito típica de se compreender a dimensão jurídica. O estudo indica, ainda, a renitência de estruturas típicas pré-modernas no imaginário jurídico brasileiro. Vislumbra-se que a imaginação acerca do direito pode ser uma chave de interpretação para análise dos aspectos jurídicos que envolvem esta insurreição popular (5), revelando a permanência de elementos de uma cultura jurídica tradicional, sua incorporação e seu uso criativo pela população de Canudos, bem como um contexto de pluralismo jurídico em pleno regime republicano, às portas do século XX.

Na primeira seção deste trabalho, são delineados aspectos metodológicos da aparente dificuldade da relação entre direito e imaginação, destacando a importância de (re)conciliar esses conceitos para compreender o passado jurídico. Além disso, ressalta-se a linha teórica adotada para analisar a história do direito a partir do Arraial de Canudos, chave para a compreensão do fenômeno jurídico sob o ponto de vista dos vencidos.

Na seção seguinte, o olhar se volta para alguns aspectos relevantes do contexto histórico-jurídico em que a insurreição popular estudada se insere. Recorre-se a algumas das obras (de uma vasta e qualificada produção sobre o tema) para traçar as principais características do processo de modernização do fenômeno jurídico que se estendeu ao longo do século XIX no Brasil. Busca-se entender como a cultura jurídica brasileira recepcionou uma visão de modernização (vinda especialmente da Europa) projetando um futuro que carregou, inevitavelmente, traços da peculiar e longa tradição do Antigo Regime.

Em seguida, são investigadas algumas das principais linhas constitutivas do imaginário jurídico no Arraial de Canudos. Com apoio na historiografia sobre o tema, a análise toma como fontes sobretudo os escritos de Antônio Conselheiro (6). Nesses textos, o rábula que liderou o movimento deixou os sermões que transmitia para a comunidade, deixou impressa sua visão de mundo e do direito, sobretudo acerca da ordenação no arraial e da sua oposição à ordem republicana. São indícios - não obstante as tensões no sentido de uma progressiva, ainda que contraditória e complexa, monopolização do direito por parte do Estado - de permanência no final do século XIX da noção de que era possível imaginar uma ordem jurídica avessa às pretensões estatizantes e organizar, a partir disso, uma comunidade com relativa autonomia (inclusive no direito).

2) Imaginário e dimensão jurídica

Parece difícil associar o discurso jurídico à imaginação. Dificuldade que possui suas próprias razões históricas. A modernidade jurídica teve como uma de suas pretensões afastar a imaginação do discurso jurídico. A busca pela racionalidade científica, presente principalmente no positivismo (científico), culminou na produção de um saber que nega a presença da imaginação na construção do conhecimento jurídico. Conhecer é, para essa linha discursiva, descrever, e não criar. Nesse sentido, Pietro Costa sugere que essa visão da "realidade" distingue o papel do jurista--que deve descrevê-la--do papel do poeta--cuja atribuição é ultrapassá-la (7).

Neste cenário de modernização, a partir da crise da interpretatio iuris na Europa do ius commune, as codificações e a pandectística convergiram ao entender o discurso jurídico como produtor da "verdade", mitigando o papel da imaginação na produção do conhecimento:

O discurso jurídico anuncia-se como um discurso do saber que produz diretamente a verdade. O discurso jurídico, como qualquer outro tipo de saber, à medida que examina os standards descritivos, falta de valoração, rigoroso consequencialismo, objetividade, impessoalidade, abstração, generalidade, é um discurso que se considera capaz de captar, sem mediações nem incertezas, a realidade, a realidade do direito, o direito como 'realmente' é, como quer que se entenda essa expressão, o direito como 'norma especial', o direito como 'sistema de normas', o direito como 'vontade do legislador'. [...] a partir do momento em que o discurso do saber jurídico inclui a representação do direito no que é, exclui a consideração daquilo que o direito não é, porque ainda não é. A atribuição ao discurso do saber jurídico do 'poder' da verdade, a ênfase posta em sua capacidade de refletir, no espelho da 'pura' lógica e da descrição desinteressada, a forma jurídica do real, exige, para tanto, a proibição da faculdade de inventar e, usemos também a palavra, de imaginar: de imaginar pelo e mais além do direito, que é o direito que pode ser; de imaginar, por dentro e mais além do direito que é, o direito em que se converte (8). Segundo Pietro Costa, a política e a interpretação representam essas duas formas de imaginar o direito. No entanto, gradualmente, a modernidade jurídica buscou afastá-las. O paradigma lógico-positivista, no entender de Costa, nega a influência da política no terreno do saber jurídico, uma vez que ela interfere na almejada descrição objetiva da 'verdade' do direito. Com efeito, tal paradigma exclui do horizonte as outras possibilidades de manifestação do direito. A interpretação, por outro lado, cerne da experiência jurídica, é posta de lado ou desvalorizada por este paradigma lógico-positivista, em detrimento do doctor iuris (advogado, notário, juiz), limitando a atuação do jurista à extração do sentido "verdadeiro" e "único" do texto (como se isto fosse possível). Todavia, na interpretação de Costa, ao contrário desta pretensão, a relação entre imaginação e discurso jurídico parece ser intrínseca. Neste sentido, destaca-se também a visão de Antônio Manuel Hespanha:

[...] antes de a organizar, o direito imagina a sociedade. Cria modelos mentais do homem e das coisas, dos vínculos sociais, das relações políticas e jurídicas. E, depois, paulatinamente, dá corpo institucional a este imaginário, criando também, para isso, os instrumentos conceituais adequados (9). Pietro Costa demonstra que a construção imaginativa do discurso jurídico esteve presente em dois contextos históricos radicalmente distintos: tanto no medieval quanto no próprio discurso positivista. A partir dessa constatação, ele delineia elementos para o resgate da relação entre a imaginação e o direito.

Costa destaca que uma das especificidades do discurso jurídico em relação a outros ramos do saber é a presença essencial da imaginação do próprio objeto. Assim, a visão de temporalidade marca a atividade do jurista, pois ele constantemente imagina a realidade existente e projeta um futuro (dever-ser), conectando passado, presente e futuro:

Na realidade, sob outro ponto de vista, o movimento, o fluxo da temporalidade rompe o universo jurídico, passando não por uma porta secundária, mas pela principal, seja qual for a barreira anti-historicista erguida por um ou outro teórico do direito. O mundo possível que o discurso jurídico constrói, na verdade, não é só um mundo imaginado, é também um mundo projetado [...] O discurso jurídico é, intrinsecamente, também um projeto de sociedade (10). Ricardo Marcelo Fonseca (11) também oferece apontamentos para uma análise do imaginário jurídico. Segundo ele, o imaginário é um específico processo criativo, que parte de uma tentativa de expressar a realidade a partir de referências culturais próprias do contexto histórico e opera efeitos concretos sobre a realidade jurídica, transformando-a (12). Ainda, as fontes para o estudo do passado jurídico possivelmente contêm "grandes porções do imaginário", de maneira que não é possível ignorar essa dimensão simbólica na historiografia jurídica.

Além disso, "o direito, embora trabalhe emblematicamente com funções de realidades instituídas, exerce também funções instituintes [...]" (13) que se ligam à criatividade da imaginação para estabelecer novas significações em uma rede simbólica. A característica "estabilizadora" dos sistemas jurídicos e a não rara concorrência entre estes são fatores que revelam a inserção do direito no âmago do social e...

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