Bem-estar animal ou libertação animal? uma análise crítica da argumentação antibem-estarista de gary francione

AutorCarlos Naconecy
CargoDoutor em Filosofia, pesquisador e autor de Ética & Animais, Edipucrs, 2006
Páginas235-267

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1. Por que a escolha deste tema?

Dentro do panorama atual do movimento de defesa animal tem ocorrido um fenômeno muito singular, a saber, uma polarização entre duas posições, a do chamado Bem-Estar Animal, de um lado, e a do Direitos dos Animais, de outro, também chamado de Abolicionismo Animal. Podemos qualificar essa contraposição: (1º) essa rivalidade está se acirrando, (2º) a controvérsia se faz mais presente na esfera ativista do que na literatura acadê-mica, (3º) muito do combustível dessa disputa provém da obra do professor norte-americano de direito Gary Francione e (4º) a conseqüência indesejável dessa rivalidade é a de passar uma mensagem confusa para o público a respeito dos objetivos do movimento animalista.

Irei criticar aqui os argumentos antibem-estaristas de Francione, tal como eles aparecem na obra Rain without Thunder1, dentre outros textos de menor fôlego. A escolha por esse autor se deve à seguinte razão: o leitor não familiarizado com o debate internacional atual fica com a impressão de que Francione tem quase o monopólio da reflexão em Ética Animal. Tal impressão decorre do fato de que Francione é o pensador animalista que tem suas idéias mais amplamente ventiladas nos meios de comunicação eletrônica da Internet, traduzidos convenientemente para o idioma português. Por meio deles, Francione tem falado praticamente sozinho. Seus argumentos parecem não receber contra-argumentação e são aceitos quase sem maiores contestações pela comunidade ativista. Minha intenção é mostrar que sua argumentação não transita pacificamente dentro do debate em Ética Animal. Farei isso apresentando, principalmente, um extrato das críticas avançadas por David Sztybel no artigo Animal Rights Law: Fundamentalism versus Pragmatism2, no qual

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é defendida a posição chamada de Abolicionismo Pragmático3, além das contribuições de outros pensadores da área, como Steven Wise e Steve Best.

Meu objetivo aqui é apresentar uma posição ética pessoal que suspeito que muitas outras pessoas também compartilham. Irei atacar a tese de que apenas os movimentos que lutam exclusivamente pelo fim da exploração são benéficos aos animais. Irei disparar contra a idéia de que reformas bem-estaristas são mais prejudiciais aos animais que reforma nenhuma. Ou seja, sustentarei que a argumentação de Francione é fortemente questionável, cria um racha desnecessário no movimento de defesa animal, e pode fazer mais mal do que bem para os animais. Antes, porém, gostaria de fazer uma ressalva, aparentemente óbvia, dirigida principalmente àqueles não habituados ao exercício acadêmico: não confundam a crítica sobre algum problema teórico na fundamentação da causa com a crítica à própria causa. Pode parecer o oposto, mas as ponderações que se seguirão não visam desqualificar a causa abolicionista; pelo contrário.

2. O que diz Francione

Gary Francione é um filósofo do Direito, não um filósofo da Moral. Ele não nos apresenta uma axiologia própria e genuína, mas apenas reúne conceitos de outros pensadores da área. De Peter Singer, ele tomou emprestado o princípio de igual consideração de interesses e a vinculação lógica entre interesses e senciência. E, de Tom Regan, ele tirou o conceito de sujeito-deuma-vida e o princípio moral que proíbe usar uma criatura apenas como meio para o benefício de outra - o chamado Princípio de Respeito de Regan - que, por sua vez, é uma adaptação da segunda fórmula do Imperativo Categórico de Kant.

A principal contribuição positiva de Francione, no entanto, é distinguir, em termos morais e legais, nosso uso de animais, de um lado, do nosso tratamento de animais, de outro. Por conta

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disso, o movimento de defesa animal está dividido em três posições: (1) A escola do Bem-Estarismo, que aceita o uso humano dos animais na medida em que eles sejam tratados humanitariamente, isto é, que se evite seu sofrimento desnecessário. O foco desta corrente é a regulamentação do tratamento animal; (2) a posição do Direitos dos Animais, ou Abolicionismo Animal, que sustenta que nosso uso de animais não é moralmente justificado e, portanto, deve ser abolido. Entre ambas as posições, temos (3) aquela que Francione denomina de "Novo Bem-Estarismo", que defende a regulamentação a curto-prazo enquanto não se atinge o fim último da libertação animal ou, pelo menos, uma redução significativa da exploração animal no futuro. Francione declara que apenas a segunda posição, a do Direitos, é legítima.4Em Filosofia Moral, direitos fundamentais protegem aquilo que é inegociável ou inalienável. A tese básica de Francione é bastante clara: todos os seres sencientes têm o direito de não serem usados exclusivamente como meios para os fins de outros. Diferentemente de quaisquer coisas que possuímos, os animais têm o direito básico de não serem item de propriedade de seus donos. Podemos chamar esse direito básico de "proto-direito", isto é, o direito de ter outros direitos. Dito isso, apresento, a seguir, uma sucessão de objeções à posição de Gary Francione.

3. Francione apresenta falsas analogias: abolir o abuso dos animais em graus não é semelhante a abolir o abuso infantil ou a tortura em graus Propor o consumo eticamente mais consciente de animais não é semelhante a propor o estupro com maior consciência ética

Inspirado por Francione, o discurso abolicionista freqüentemente compara uma ética da suavização do sofrimento animal com uma ética da suavização da pedofilia, estupro e outras violências hediondas. Trata-se, entretanto, de analogias engana-

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doras no sentido prático, uma vez que a escravidão, estupro e pedofilia já são condenados pela nossa moralidade social e já são considerados legalmente crimes, enquanto que a sociedade e os juízes aceitam o uso e a exploração de animais. Pensar em eliminar a exploração animal gradativamente não é pragmaticamente análogo a consentir no combate à exploração infantil também de forma gradual, pois a exploração de menores já é entendida como moralmente inaceitável nas sociedades contemporâneas. Já há leis contra o abuso infantil e as pessoas já se revoltam em face da violência contra crianças, pelo simples fato de saberem que isso está acontecendo diante delas. Mas expor o confinamento de uma porca-parideira numa gaiola de gestação não gera indignação moral da maioria das pessoas. Uma reportagem sobre alguém que abusou de uma criança já provoca a prisão do autor. Mas uma reportagem sobre a criação de porcos não provoca a interdição da fazenda.

Essa analogia também resvala em outro ponto, quando estabelece uma semelhança entre o uso mais consciente de animais e, por exemplo, o estupro com maior zelo ou escrúpulo por parte do estuprador. Por quê? Porque propor reformas bem-estaristas para melhorar o tratamento dos animais não implica legitimar o uso deles - da mesma maneira que propor leis que impõem penas mais severas ao estuprador, que também espanca sua vítima, não significa reduzir a gravidade moral do crime do estupro (sem espancamento). A retórica de Francione carrega um sofisma aqui.

4. Francione comete o erro de desconsiderar o contexto de um problema moral na comparação entre escravidão humana e escravidão animal

Francione pratica também um erro de interpretação contextual de injustiças. Se há um clima social já favorável à abolição da escravidão de uma categoria de vítimas, uma lei bem-estarista irá atrasar o processo abolicionista. Mas se a atmosfera social for

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desfavorável à abolição, uma norma bem-estarista não irá retardar ou impedir a abolição; ao contrário, irá promovê-la. Voltarei a isso mais adiante, mas, por enquanto, uma referência à escravidão humana no Brasil colonial pode ser esclarecedora.

Podemos admitir que, no final do século XIX, a aprovação de uma lei que regulamentasse a ventilação nas senzalas, obrigando a instalação de janelas, poderia ter retardado a assinatura da Lei Áurea no Brasil. Por quê? Porque já havia uma sensibilidade social pró-libertação dos escravos à época. Mas esse não é o caso da abolição animal: a possibilidade política e jurídica...

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