Benjamin como comentador /Benjamin as commentator.

AutorVismann, Cornelia
CargoReport
  1. Sobre a forma do comentário (1)

    A que género podem ser atribuídos os textos que Walter Benjamin escreveu sobre outros autores como Hebel, Kraus, Brecht ou Kafka? Na edição completa, eles constam sob a rubrica "Artigos, Ensaios, Palestras" ["Aufsätze, Essays, Vorträge"]. Deixemos em aberto se devemos classificar os textos sobre as obras de escritores antigos e contemporâneos como artigos ou ensaios, e qual seria exatamente a diferença. Que o próprio autor se posicione quanto a isso. Quase nenhum de seus textos é escrito sem uma reflexão sobre a forma do texto. Para as peças aqui em questão, dedicadas a outros autores, existe até mesmo um texto especificamente sobre o assunto. Trata-se da breve monografia "Sobre a forma do comentário" ["Zur Form des Kommentars"]. Nas obras completas, ela precede os "Comentários sobre poemas de Brecht" ["Kommentare zu Gedichten von Brecht"]. (2)

    Nessa reflexão poética sobre o género, Benjamin delimita o comentário em oposição ao parecer [Würdigung], presumindo que um texto sobre as obras de algum escritor seria provavelmente atribuído a esse género. Comentário e parecer não seriam, entretanto, exatamente opostos. Afinal, um comentário pode também ser um parecer. As duas formas diferem apenas no momento da avaliação crítica e julgamento de seu objeto. Quem escreve o parecer de uma obra literária chega, através de sua argumentação, a um juízo sobre ela. O comentário, por sua vez, já parte sempre "do caráter clássico de seu texto" (p. 539). A caracterização de um texto a ser comentado como "clássico" não é, por sua vez, um parecer no sentido de um juízo sobre ele. Tratase, como escreve Benjamin, de um pré-julgamento. Com a escolha de subordinar seu próprio texto à forma do comentário, os textos de referéncia fatalmente tornam-se clássicos.

    Esse poder performativo da forma comentário já sugere que deve tratar-se de um gênero altamente formalizado. Mas sua forma não é sustentada por um espartilho de regras. Tão logo um texto é classificado como um comentário, ele já está na forma. A forma é suficiente para evitar qualquer amorfismo. Tal soberania da forma sobre o conteúdo não encontra igual entre os gêneros literários. Em contraste com o rígido soneto ou mesmo com o ensaio, a forma do comentário não se desenvolveu na prática da escrita literária. Ela foi decretada por lei e no entorno das leis.

    O comentário, independentemente de se referir a textos legais ou a outros tipos de textos, adquiriu sua forma através de um trabalho jurídico que está entre os mais clássicos para os juristas, o Digesto de Justiniano. Como se sabe, essa coleção de sentenças legais surgiu a partir de um sem número de textos jurídicos legados pela tradição. Com essa coleção, o imperador Justiniano demarcou, na antiguidade tardia, de uma vez por todas, um limite final para a proliferação desordenada e sempre crescente de textos legais. Ele encarregou uma comissão para separar os textos mais úteis do conjunto de escritos antigos e organizá-los de modo a constituir um livro acabado. O resultado foi o Digesto. Ele ofereceu, pela primeira vez, a oportunidade de referir-se a tais escritos sem modificar o próprio conjunto dos textos. Em vez de, como antes, a cada vez reescrevê-lo e modificá-lo, um comentário podia agora deixar intocado aquilo que comentava. Mas antes que essa possibilidade se esgotasse, o comentário precisou primeiro tornar-se, ele mesmo, objeto de regulamentos. Tendo ordenado a codificação dos textos legais proliferantes, o imperador, temendo que a obra jurídica criada pudesse novamente deformar-se através de novos comentários, proíbe toda forma de escrita que pudesse afetar o texto então constituído. O Digesto proíbe que se adicionem comentários ao próprio Digesto (Const. Deo Auetore 12: "[...] commentaries illi applicare [...]"; Const. Tanta 21: "[...] comentarios adiectere [...]"). Permanece incerto se isso significava simplesmente não adicionar, materialmente, comentários ao próprio código jurídico, ou se a proibição pretendia impedir quaisquer comentários relacionados a ele, mesmo que escritos em outra folha. Os juristas posteriores compreenderam que a proibição tornava ilegal a forma mesma do comentário e, consequentemente, violaram-na com seus próprios comentários a respeito.

    Sobre o plano de fundo dessa proibição geral, o Digesto abre três exceções, o que significa, na verdade, que ele enquadra o gênero do comentário em seus limites legais e lhe dá, pela primeira vez, uma forma. Pertencem às formas permitidas do comentário--o que vale inclusive para os regulamentos do próprio Digesto (Const. Tanta 21)--paratitla (coletâneas de passagens paralelas), indices (descrições sobre o teor do texto) e traduções literais (katá podà). Um comentário que faz mais ou outra coisa que isso, um comentário que não apenas faz analogias, parafraseia ou traduz, esse comentário comete uma falsificação (crimen falsi). No caso de infração, o Digesto ameaça a destruição do texto de tipo ilegal.

    Desde a regulamentação da prática legal de interpretação e discussão pelo imperador Justiniano ficou fixado que os comentários podem apenas e tão somente dizer o que o texto já contém. Podem repetir o que foi dito com outras palavras. Ou, para parafrasear ainda com outras palavras, não podem fazer nada além de produzir ruído ou redundâncias sobre um texto original. Nada mudou até os dias de hoje, exceto que não é mais necessária a aplicação de nenhuma penalidade discursiva regulamentada, como aquela do Digesto. Não que os comentadores tenham se comportado bem nesse meio tempo, e sido domados permanentemente pela autoridade da lei. Os comentários são protegidos contra infrações por conta própria, sem nenhuma ameaça de punição por destruição do texto, simplesmente porque estão em forma. Sua forma submete todo conteúdo à lei da redundância. Em outras palavras: Eles são, per definitionem, por definição jurídica, legais. Seria até absurdo falar em comentários proibidos ou em proibição de comentários. Ou um texto é um comentário, ou não é. Não há comentários ilegais. Proibições de comentários, como a de Justiniano, tornaram-se obsoletas uma vez que a forma do comentário implementou essa lei. Assim, os comentários provam ser uma "forma autoritária" (p. 539). Eles forçam o autor de um comentário a subjugar-se à forma, sem a necessidade de nenhuma proibição. De qualquer modo, a autoridade da forma é mais forte que o desejo de algum comentador de a implodir.

    A questão, então, é: para que comentários afinal? Por que alguém deveria escolher voluntariamente a forma do comentário para expressar sua opinião sobre uma obra--seja de legislação, seja literária? Que novidade poderia ser dita se seu discurso em formato do comentário está inevitavelmente sujeito à lei da redundância? Por que um comentário é necessário, se é garantido que ele contém apenas ruído e nada de novo? Do ponto de vista da teoria da informação, a resposta é fácil: porque apenas o ruído permite a informação. Os hermeneutas justificariam a necessidade de comentários com a afirmação de que um texto, inclusive e especialmente um texto jurídico, não é compreensível por si só. A análise do discurso diz que o comentário tem a função de: "dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito". (3) Portanto, não se trata apenas de analogia, paráfrase e tradução, as três formas expressamente permitidas de comentário no Digesto. Também acontece de se contrabandear algo novo sob o disfarce do comentário.

    Esse contrabando não é incriminado no Digesto, tão avesso aos comentários. Até mesmo ele lança mão da cumplicidade entre texto e comentário: enquanto um fica de tocaia, o outro pode fazer suas coisas em paz. Assim, o comentário, sempre vigilante e sempre atualizável, registrando cada modificação, protege a lei eterna. A política discursiva do imperador Justiniano busca precisamente o duplo objetivo de fazer do comentário um refrão constante de seu livro de leis, bem como de repetir, sob a máscara de Paratitla, Indices e tradução, o que nunca havia sido dito. Dessa forma, sob a mão do comentador, o comentário renova e aperfeiçoa a lei. Ele tem a função de compensar a falibilidade do texto clássico. Suaviza contradições, ilumina passagens obscuras de texto, preenche lacunas nos regulamentos, ajusta o texto à situação modificada. O perigo de inovações subversivas, que o Imperador Justiniano tinha ameaçadoramente em vista, foi efetivamente eliminado na forma. Há tanto de novo a ser dito quanto um jurista é capaz de imaginar e, no entanto, um comentário só pode trabalhar a favor da lei em vigor, nunca contra ela. O comentário não precisa, portanto, de um censor contra inovações subversivas. A censura já está presente na forma do comentário. Foucault descreve o mecanismo--que ele chama de princípio--do poder de auto-legalização da forma com as seguintes palavras:

    O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (4) O próprio Benjamin, que se referiu a e comentou repetidas vezes sobre a figura do retorno do sempre mesmo nas Passagens, percebe inicialmente no comentário, e na atividade relacionada da tradução, apenas aquele ruído que as duas operações geram. A esse respeito, escreve em Rua de mão única: "Comentário e tradução [...]: [...] Na árvore do texto sagrado são ambos apenas as folhas eternamente sussurrantes, na árvore do texto profano são os frutos que caem no tempo certo." (5) Benjamin diferencia, assim, se é um texto sagrado ou profano que é comentado. A referência à Bíblia produz ruídos atemporais...

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